Em 20 de julho de 1969, o homem chegou à Lua. O “pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade” do astronauta Neil Armstrong recebeu só desdém de um grupo de pessoas em Nova York. “Não importa a Lua. Vamos pegar um pouco desse dinheiro e usar no Harlem”, disse um homem para as câmeras de TV.
Naquele mesmo domingo de 52 anos e meio atrás, acontecia no Mount Morris Park (atual Marcus Garvey Park) uma série de shows do Festival Cultural do Harlem. Durante seis fins de semana do verão de 1969, de 29 de junho a 24 de agosto, uma multidão se reuniu para assistir aos shows de Stevie Wonder, Nina Simone, Sly & the Family Stone, BB King, Gladys Knight & the Pips, entre vários outros. Era “um mar de negros”, descreveu, com orgulho, uma pessoa da plateia.
A 160 quilômetros dali, entre 15 e 18 de agosto, milhares de jovens se reuniram para o Festival de Woodstock. O evento captou todas as atenções – e o documentário vencedor do Oscar “Woodstock – 3 dias de paz, amor e música” (1970) espalhou a história para o resto do mundo.
O Festival Cultural do Harlem não teve a menor chance – permaneceu como uma memória distante dos que participaram dele, até ser recuperado no filme “Summer of soul (...Ou, quando a revolução não pode ser televisionada)”, que estreia nesta quinta-feira (27/1), em Belo Horizonte, no UNA Cine Belas Artes.
Vencedor do Prêmio do Público e do Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance do ano passado, onde fez sua première; um dos documentários pré-indicados ao Oscar 2022; um dos filmes favoritos do ex-presidente Barack Obama em 2021, “Summer of soul” está com uma trajetória e tanto. Marca ainda a estreia na direção de Ahmir “Questlove” Thompson, percussionista, produtor, DJ, baterista da banda The Roots e um incansável garimpeiro dos bons sons.
WOODSTOCK NEGRO
Foi no Japão, em 1997, que ele soube da existência do evento, por meio de um clipe pirata de Sly & the Family Stone de apenas dois minutos. As imagens – 40 horas gravadas por Hal Tulchin, que o chamou de “Woodstock negro” – aguardaram mais 20 anos desde então para que saíssem do esquecimento em que se encontravam.
“Summer of soul” vai muito além de fantásticas performances (e o material recuperado está em perfeito estado) nunca vistas. Também atua como um instrumento afetivo da música negra em meio ao Movimento dos Direitos Civis.
Martin Luther King foi morto um ano antes do Festival Cultural do Harlem. O agitador cultural Tony Lawrence resolveu criar o evento, “uma rosa saindo do cimento”, conforme atentou um dos participantes. Contou com o apoio irrestrito do prefeito de Nova York, o republicano (e branco) John Lindsay, e dos Panteras Negras, que ficaram responsáveis pela segurança do local. Era tudo de graça, aberto para a família (crianças em profusão assistem às apresentações).
Misturando as imagens dos shows com reflexões dos dias de hoje de pessoas (artistas e público) que participaram do evento, “Summer of soul” constrói uma narrativa que descreve um período de tensão. Torna-se um testemunho da cultura do Harlem da época, período marcado pelo poder e pela beleza negros. Mas também um lugar que sofria com o tráfico de drogas, violência e falta de dinheiro. Daí dá para entender o descontentamento do público com a missão Apollo 11.
Stevie Wonder fazendo um solo de bateria absurdo; Sly mostrando que diversidade, no final dos anos 1960, era uma prerrogativa da Family Stone (banda multirracial e trompetista mulher); Nina Simone, no auge, com uma nova música, “To be young gifted and black” – “Ela é algo entre a esperança e o luto”, conforme alguém definiu.
“MOMENTO IRREAL”
Os ecos do passado nada distante se fizeram ouvir naqueles dias. O saxofonista Ben Branch, a última pessoa com quem Martin Luther King falou antes de ser assassinado em Memphis (havia lhe pedido para tocar sua música favorita, “Take my hand, precious Lord”), repete o hino com Mavis Staples e Mahalia Jackson. Mavis, em depoimento para o documentário, afirma que o momento em que dividiu o palco com uma das primeiras intérpretes de gospel do século 20 foi “irreal”.
Marilyn McCoo, vocalista do The 5th Dimension, relembra como o festival foi definidor para sua carreira – o grupo vocal interpretou “Aquarius/Let the sunshine in” e era criticado, na época, por não ser “negro o suficiente”.
Os grandes momentos vão se sobrepondo – e, como documentarista, Questlove respeita o tempo de cada música, deixando as performances aparecerem como um todo. Entre os entrevistados está Musa Jackson, ex-modelo e ator, que nasceu e cresceu no Harlem. Não tinha nem 5 anos quando foi ao festival. “Agora eu sei que não sou louco”, ele diz, no final do documentário, depois de assistir às imagens que ficaram guardadas. Suas memórias, e a de tantos outros, estão neste magnífico e intenso trabalho de recuperação.
“SUMMER OF SOUL (... OU, QUANDO A REVOLUÇÃO NÃO PODE SER TELEVISIONADA)”
(EUA, 2021, 118min, de Questlove) – Em cartaz às 16h10 e 18h20, na Sala 2 do UNA Cine Belas Artes.
O que o filme não explica
Há um único porém em “Summer of soul”. Você sai do cinema se perguntando como as antigas gravações foram recuperadas para o documentário. O filme menciona en passant, com imagens de dezenas de rolos, que elas ficaram 50 anos perdidas em um porão. Reportagem do Los Angeles Times desvendou a história – e ela daria outro filme.
Em 2003, o arquivista de cinema Joe Lauro, que vive no estado de Nova York, viajou para Cope- nhague, na Dinamarca, para se encontrar com o amigo Karl Knudsen, dono da gravadora de jazz Storyville. Entre o imenso material de arquivo que Knudsen tinha, a dupla se deparou com um filme em 16mm de um programa de TV chamado “Festival do Harlem”, que foi vendido para emissoras estrangeiras no início da década de 1970.
Era uma edição das imagens captadas durante o Festival Cultural do Harlem. Impactado pela descoberta, Lauro, ao voltar para Nova York, entrou em contato com Hal Tulchin, cujo nome estava no rolo do filme. Lauro está à frente da Historic Films – a empresa é especializada em localizar, licenciar e gerenciar apresentações musicais em programas de TV e filmes antigos.
GRAVAÇÕES
No encontro, Tulchin revelou que havia gravado 40 horas do festival de 1969. Também contou que algumas apresentações foram exibidas em especiais de TV nas redes ABC e CBS no ano em que o evento foi realizado – mas que depois tudo foi esquecido e que as gravações permaneceram com ele.
Em 2004, Tulchin assinou um contrato com a Historic Films, que passou a representar as filmagens. Lauro copiou e digitalizou as 40 horas de gravações e sua empresa licenciou clipes de algumas performances.
Mas a intenção era realizar um longa-metragem. Lauro convidou o roteirista Robert Gordon e o diretor Morgan Neville (que levou um Oscar em 2014 pelo documentário “A um passo do estrelato”, sobre backing vocals) para trabalharem no projeto. Em 2007, chegaram a lançar o trailer de um futuro documentário. Receberam a oferta de US$ 1 milhão da Newmarket Films.
Neste meio tempo, Tulchin passou a fazer novas exigências. Queria, além do longa, uma série em DVD. Não houve como fechar um contrato. Tulchin deixou a Historic Films e assinou com a Newmarket Films. Morreu aos 95 anos, em 2017, sem nada ter sido feito até então. Somente depois o material foi negociado para a Searchlight (divisão da Walt Disney Company), com Questlove como diretor.
O papel de Joe Lauro na conservação das fitas não foi mencionado ou creditado quando o filme foi lançado. A história veio a público a partir de postagens em redes sociais.
O Los Angeles Times publicou um comunicado enviado pela Searchlight: “Não há dúvida do envolvimento de Joe Lauro com as imagens do Festival Cultural do Harlem. Os responsáveis por 'Summer of soul' não deixaram essa história de fora do filme para ignorar este trabalho. Na verdade, em entrevistas recentes, os produtores reconheceram que qualquer um que reconheceu o valor da filmagem merece crédito por isso”. (MP)