Jornal Estado de Minas

CINEMA

Filme mineiro 'Marte um' disputa prêmio no Festival de Sundance


A edição 2022 do prestigioso Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos, deve anunciar nesta sexta-feira (28/1) o título vencedor da Mostra Competitiva Cinema Mundial, em que o Brasil está representado com “Marte um”, do diretor mineiro Gabriel Martins, cofundador da produtora Filmes de Plástico, de Contagem.





Independentemente de qual seja o resultado do festival, cuja programação se estende até domingo, Gabriel Martins avalia que o fato de estar na disputa representa muito para o longa, para a equipe envolvida em sua produção e para o cinema brasileiro, em geral.

“Estar numa seleção como essa abre muitas portas. Vejo agora, na prática, o quanto essa atenção dada por um festival tão tradicional e importante mobiliza, principalmente a imprensa. O público passa a ter um interesse prévio por esse projeto. Eu me sinto honrado e grato. Hoje em dia são tantos filmes bons acontecendo no mundo que, se de alguma forma nosso projeto consegue ter uma atenção, isso me deixa muito feliz”, diz o cineasta.

“Marte um” conta a história de uma família negra de classe média baixa: o pai, Wellington (Carlos Francisco); a mãe, Tércia (Rejane Faria); a filha, Eunice (Camila Souza), e o irmão, Deivid (o estreante Cícero Lucas), sobre quem recai o foco do longa. 





Deivid joga futebol, mas sonha em ser astrofísico para poder participar da missão Marte 1, a ser realizada em 2030, com o objetivo de conquistar o Planeta Vermelho. A trama transcorre a partir de 2018, quando Jair Bolsonaro é eleito presidente, e segue os personagens por alguns meses, acompanhando o impacto das mudanças políticas no Brasil para aquele núcleo familiar.

A eleição de 2018, que conduziu Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil, serve como pano de fundo para a trama (foto: Filmes de Plástico/Divulgação)

REPERCUSSÃO INTERNACIONAL

O filme foi exibido pela Mostra Competitiva Cinema Mundial de Sundance em formato on-line – para o qual os organizadores adaptaram às pressas a edição deste ano, devido ao avanço da variante ômicron nos EUA – entre os últimos dias 20 e 24. Desde então, a repercussão tem sido muito positiva, conforme comenta Martins. Ele conta que um volume grande de críticas, oficiais e não oficiais (o que expressa um retorno do público também), tem sido publicado em diversos canais.

“Dei muitas entrevistas para veículos norte-americanos e acabei de participar da gravação de um debate com diretores negros que vai ao ar em fevereiro, nos Estados Unidos. Não consegui ler tudo o que já foi publicado, mas tenho acompanhado a repercussão on-line e tem sido muito legal. Percebo que o filme teve uma recepção positiva, muito emocionada e calorosa, ou seja, não só por um viés racional”, diz.





Martins conta que a ideia para “Marte um” veio na esteira da derrota da seleção brasileira para a Alemanha por 7 a 1, na Copa do Mundo de 2014. Ele disse que ficou pensando no peso que o futebol tem no país e, naquele momento, atrelando o placar vexatório do jogo à situação política que o Brasil vivia. 

“Junto disso veio o entendimento da negritude entrando mais forte na pauta das discussões, eu me entendendo como cineasta negro. Isso tudo me levou ao Deivinho, esse garoto que joga futebol, mas pensa em ser astrofísico. Foram surgindo a partir daí outros arquétipos do que seria a família desse garoto”, diz.

(foto: Filmes de Plástico/Divulgação)

EXPERIÊNCIA PRÓPRIA 

Uma característica comum às produções da Filmes de Plástico (“Ela volta na quinta”, “No coração do mundo”, “Temporada”) é o fato de tratarem da vida real, daquilo que os diretores experimentam ou observam no dia a dia. Com “Marte um” não é diferente. Martins assente que há um paralelo entre o sonho de Deivid com a astrofísica e o seu próprio, alimentado desde a infância, de ser cineasta.





“Tem coisas no filme que não estão diretamente ligadas a mim, mas que observei ao longo da vida. E tem muito da minha relação com meu pai. São coisas que experimentei e distribuo com os personagens”, destaca. O fato de usar a eleição de Bolsonaro e os primeiros meses de seu governo como pano de fundo levanta uma questão: a realidade se contrapõe à possibilidade de sonhar?.

“Acho que essa realidade coloca desafios na pureza do sonho. Existe o sonho como algo muito potente, mas, ao mesmo tempo, os conflitos sociais, o jogo da sociedade, esse projeto de presidência, o conflito de classes, tudo isso interfere. Mas o filme acredita que entre o lugar da utopia e o da possibilidade existe a vida”, diz.

Ele ressalta que em “Marte um” o panorama político brasileiro no momento em que transcorre a trama é apenas um cenário, não dita o que é o filme, e que o longa aborda conflitos da sociedade que já vinham desde antes.



“A eleição, no longa, é mais para trazer uma atmosfera de tensão. Lançando o filme agora, quase quatro anos depois, a gente tem uma dimensão mais grave do que significou. O Brasil está precisando sonhar, porque estamos num momento de depressão. Mas não quis, lá atrás, fazer um diagnóstico do que seria esse governo ou esse período que estamos vivendo; nem sequer conseguiria”, observa.

“Marte um” foi realizado graças ao edital de Baixo Orçamento para Longa Afirmativo, para cineastas negros e negras – o primeiro e único do tipo, realizado em 2016. O diretor destaca que isso lhe trouxe um senso de responsabilidade muito grande, com a compreensão de que o filme poderia ser uma forte representação da cultura de que faz parte.

“Coloco muito afinco em qualquer trabalho que envolva dinheiro público. Uso o dinheiro com a responsabilidade que me é confiada e com muita seriedade. Nesse caso, pensei muito no que esse filme poderia representar de conexão para a população negra. Não doso minha criatividade em função de expectativas, não tenho como querer agradar a todo mundo, mas pensei num filme que fosse muito sincero com a experiência de negritude que tenho e sempre tive ao longo da vida”, ressalta.




PROTAGONISMO NEGRO 

Com efeito, “Marte um” apresenta uma história com uma família negra no centro, cercada de amigos e vizinhos negros, mas cuja existência não se resume à violência, ao racismo e ao trauma – o que o filme também não evita. Deivinho, Eunice, Tércia e Wellington têm direito a uma existência completa, com alegrias, tristezas, preocupações e questionamentos, como todo mundo, conforme observa Martins.

A participação do longa do Festival de Sundance já rendeu ao menos uma conquista: o filme fechou com a Magnolia Pictures, que atuará como parceira e agente de vendas internacional. “É uma empresa com muita experiência, com uma circulação muito boa e com ótimos projetos no currículo. Olharam o filme de uma maneira muito cuidadosa, não só como mais um título no catálogo. Entenderam o potencial de ‘Marte um’ e já começaram a fazer um trabalho muito interessado, muito cuidadoso. Acho que vai abrir caminhos. A gente está em boas mãos”, diz o diretor.

Ele aponta que “Marte um” está incluído na programação do Festival de Cinema de Gotemburgo, na Suécia – o mais importante da Escandinávia –, em curso até o próximo dia 6, e foi pleiteado, para avaliação, por vários outros festivais mundo afora. “Não temos confirmação de nenhum outro festival ainda, mas, claro, espero que selecionem o filme.” A previsão de estreia no circuito comercial brasileiro é para agosto deste ano.





Martins disse, em entrevista recente, que se tivesse que fazer “Marte um” hoje, no atual contexto político e cultural do país, o filme simplesmente não aconteceria, em razão da quase total paralisação do setor audiovisual, por falta de incentivos.

“Historicamente, e principalmente nos últimos anos, o cinema brasileiro sempre dependeu muito das circunstâncias políticas. A gente viu, junto com os passos do atual governo, o declínio do cinema brasileiro como uma potência de investimento, o que passa pela extinção do Ministério da Cultura”, aponta.

Ele não hesita em dizer que a luz no fim do túnel para a situação de penúria que a cultura, de modo geral, atravessa está atrelada às eleições deste ano. “Temos que ver como o vencedor do pleito vai pensar a cultura, como vai resgatar um projeto de investimento na cultura que vinha sendo desenvolvido e foi aniquilado. Não posso dizer, agora, que haja uma luz no fim do túnel, o espectro político é bastante nebuloso”, afirma.





Ele considera que o Brasil atravessa um momento crucial e é importante que as pessoas se informem sobre cultura por meio de veículos confiáveis.

“A escolha dos nossos representantes impacta no trabalho de muita gente. Um projeto como ‘Marte um’ emprega entre 200 e 300 pessoas. Então, isso tem um retorno de mercado grande; não se resume à vaidade de um artista com o projeto dele. E tem a questão de uma pessoa como eu, negro, vindo da periferia, conseguir desenvolver um projeto como esse, que, de repente, cai no radar de um dos festivais de cinema mais importantes do mundo”, diz.

“Se é possível ver alguma luz no fim do túnel, é porque tem muita gente interessante e inteligente lutando pela cultura. Com todo esse desmantelamento, existe uma força de resistência que me deixa menos inseguro com relação ao futuro. Somos ainda muito reféns do poder público, mas existe sempre a possibilidade de a gente lutar”, conclui.