Os frequentadores da Livraria Ouvidor conhecem bem Simone Pessoa. Conhecem tanto que há um grupo que foge dela. “Falam que vão lá para comprar uma coisa e gastam muito mais. Tem gente que corre de mim”, afirma, com graça, a livreira de 59 anos, 24 deles nessa atividade.
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Simone é boa em ler – livros e pessoas. Tanto por isso, o meio editorial – livrarias, editoras, autores – a reconhece como a principal livreira de Belo Horizonte em atividade. Hoje, Simone encerra um ciclo. Este sábado (5/2) é seu último dia na Ouvidor, onde trabalha há 22 anos.
A decisão do proprietário da livraria, Bernardo Ferreira, de mudar de ramo não a pegou de surpresa. “Terminou um ciclo. Estou alegre, não triste. A notícia provocou um entra e sai de gente nesta semana aqui. Gosto de ter muito espaço e desde que ela (a Ouvidor) diminuiu, no ano passado, fico meio oprimida.”
Simone não se tornou livreira ao acaso. É leitora voraz desde sempre. O primeiro livro marcante foi “Meu pé de laranja lima”, de José Mauro de Vasconcelos, que ela leu aos 9 anos. Aos 12, dois outros marcos: “Encontro marcado”, de Fernando Sabino, e “João Ternura”, de Aníbal Machado. “A partir deles, criei categorias. Entendi que existe coisa diferente na literatura. Não queria ler o normal, mas coisas parecidas com aquilo.”
JOYCE:O ATLAS
Já na vida adulta, ela elege James Joyce, que conheceu na juventude. “Foi ele quem me ensinou a ler, virou como um atlas para eu entender um tanto de coisa.” Nessa época, Simone, nascida em fazenda – em Dores do Indaiá, onde as distrações eram livro e rádio – já tinha consciência de que adorava ler, mas não gostava de estudar.
Cursos universitários foram três, todos deixados pela metade: biblioteconomia, comunicação social e filosofia. “Eram os famosos anos 1980 e não gostei de quase nenhum professor”, diz. Vivendo em Belo Horizonte desde 1981, ela frequentava muito bibliotecas. Era o auge das locadoras de filmes. Trabalhou na época em duas, Videohouse e Index, esta última um misto de locadora, loja de CD, galeria de arte, bar e livraria.
No início da década de 1990, Simone decidiu dar um tempo e voltou para a fazenda. No retorno a BH, entrou direto para a então recém-inaugurada Livraria da Travessa. Foram dois anos até ser chamada para a Ouvidor, onde está desde 2000. “A Ouvidor foi um marco nas livrarias de Belo Horizonte, pelo menos da minha geração. Sempre foi a livraria da turma do cinema, da Fafich.”
A experiência foi lhe mostrando os caminhos. “Faz parte do trabalho ver livro por livro, saber o que é novidade, e colocar exatamente um título do lado de outro que forme um conceito. A mesa (onde estão expostos os livros) tem que ter estética, um título que chame a atenção. E não precisa ser um best-seller, pois ele anda sozinho. Você tem que propor novidades. Tem livraria em que você chega e não consegue identificar as coisas”, afirma Simone.
O MELHOR DE PAULO COELHO
Ela atende todo tipo de gente. “Sou super-sensível para ‘ver’ as pessoas, então não erro muito. Penso que livro é um gasto. É como comer comida ruim, você fica revoltado, não quer mais aquilo.” Tenta encontrar o melhor até quando o autor não ajuda. “Se a pessoa gosta de Paulo Coelho, procuro dar o melhor Paulo Coelho, pois quero que a pessoa leia melhor. Vou direcionando, pois acho que parte do meu ofício é ensinar as pessoas a lerem melhor. E tem que ler desde criança – não existe criança que não goste de ler, mas você tem que dar o livro certo para chegar a ela.”
Neste corpo a corpo com os clientes, Simone só tem uma dificuldade: leitor de livro espírita. “Não sei o que é, mas a conversa não rende.”
Na hora em que a loja está vazia, Simone não quer saber: está sempre lendo. “Começo na livraria, levo para casa e, com um dia e meio, já terminei. Não ouço música, não vejo televisão, então em casa também leio muito.” Com a leitura rápida, ela fica atenta até às notas de rodapé. “Gosto de descobrir coisas, datas, peculiaridades do autor e do texto.”
Mas quando o livro não a empolga, não tem o menor pudor em parar no meio a leitura. “Não leio por obrigação. Só o faço quando é trabalho, pois corrijo livros, faço revisão, as pessoas me dão para opinar. E sou superfranca, falo o que achei mesmo.”
Com uma biblioteca grande em casa, que dividiu recentemente quando o filho único, o advogado Bernardo Pessoa, se mudou – “É um livreiro e tanto, uma das pessoas mais cultas que conheço” –, Simone viaja mesmo é na literatura.
Andou de avião pela primeira vez (e até então única vez, já que não gosta de viajar) em setembro de 2019, quando passou férias com uma amiga no Rio de Janeiro. O filho brincou que ela não conheceu o Rio, pois só ficou entre Copacabana e Ipanema. “Nem no Real Gabinete de Leitura eu fui”, conta ela. Mas até nas férias ela vendeu livros.
Com uma amiga, foi à Livraria da Travessa de Ipanema. “É igualzinha à de Belo Horizonte (fechada em 2013), com a mesma distribuição.” Simone não se fez de rogada. Não apareceu nenhum livreiro para atender a dupla – ela própria sugeriu os livros para a amiga. “Ela gastou mais de R$ 400”, conta.
Em seu apagar das luzes na Ouvidor, a livreira dá dicas para quem está à procura de boas obras. Seu autor predileto, hoje em dia, é o americano William Faulkner (1897-1962). “Demorei a começar a lê-lo e tenho gostado muito.” De autores contemporâneos, destaca a italiana Elena Ferrante e o brasileiro Alejandro Chacoff. “Gostei muito do primeiro romance dele, ‘Apátridas’. É um autor que vou acompanhar.”