Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Ítalo Moriconi analisa o legado da Semana de 22, que completa 100 anos

O ensaísta, poeta e crítico literário Ítalo Moriconi transita por múltiplos circuitos da cultura. Além de participar intensamente dos debates acadêmicos sobre a revisão do Modernismo, ele acompanhou de perto a emergência da Tropicália e da poesia marginal, os dois últimos ciclos diretamente marcados pela influência do movimento de inovação deflagrado pelos paulistas em 1922. Nesta entrevista, Moriconi fala sobre o impacto da Semana de 22 na cultura brasileira.



Qual foi a contribuição do Modernismo para a criação da literatura brasileira moderna?
O Modernismo criou o conceito e a prática do moderno no Brasil. A maneira como o Brasil cultural e artístico se vê a si próprio, ao longo de todo o século passado, desde a Semana de 1922, foi moldada pelo Modernismo. O Modernismo reviu a história brasileira e resgatou nossa herança colonial e escravocrata. Do ponto de vista da linguagem literária, o Modernismo coloquializou, estabeleceu e homogeneizou o padrão linguístico nacional. Na língua brasileira consolidada pelo Modernismo foram escritas as maiores, mais canônicas obras literárias do século, na poesia e na prosa. De movimento iconoclástico e inovador dos anos 1920, sob a égide da Semana, o Modernismo se tornou a cultura oficial do Brasil desde a gestão de Gustavo Capanema na Educação (com assessoria direta de Carlos Drummond de Andrade), no governo Getúlio. Vale enfatizar que a modernidade na versão do Modernismo brasileiro é uma modernidade profundamente nacional.

Em que momento as propostas do Modernismo produziram alta literatura? A poesia inicial de Oswald de Andrade era alta literatura?
Não acho que a poesia pau-brasil seja alta literatura nem que Oswald pretendia que fosse, a não ser ironicamente. Mas certamente a proposta era uma intervenção singular, criativa, extremamente inteligente e original visando dois edifícios canônicos, o literário e o histórico. O valor relativo da poesia pau-brasil deve ser estabelecido numa comparação com “Alguma poesia”, de Drummond, e os primeiros poemas de Murilo Mendes, assim como outros que publicaram nos anos 1920 e depois sumiram. Todos os grandes autores brasileiros do século 20, prosadores, poetas e dramaturgos como Nelson Rodrigues, todos, sem exceção, são tributários dos valores e da língua brasileira culta consolidada pelo Modernismo. O ponto fora da curva é Guimarães Rosa, cuja modernidade estética insere-se num conceito de modernismo mais abrangente do que aquele que constitui a pedagogia do modernismo no sentido brasileiro estrito.

Como você analisa a relação da poesia de Drummond com o movimento de 1922?
A obra completa de Carlos Drummond exemplifica todas as fases do modernismo, desde o tempo iconoclástico de “Alguma poesia”, passando pela alta poesia de “Rosa do povo”, pelo neotradicionalismo cético de “Claro enigma” e voltando ao poema curto, poema-crônica-memória dos “Boitempos”, entre outras vertentes da poesia dele. A poesia de Drummond é a suma poética do século 20.



Qual é a relevância do Modernismo para a releitura do Brasil?
As grandes obras de interpretação brasileira dos anos 1930, de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, são produtos diretos do Modernismo, nas versões paulista e pernambucana. Tudo que se segue em matéria de estudos históricos, sociologia, antropologia e ciências humanas em geral, dos anos 1940 aos 1970, é intelectualmente tributário do Modernismo. O Modernismo de 1922 se tornou não só a cultura oficial do Brasil, como também a cultura acadêmica sobre o Brasil hegemônica na universidade brasileira. Aliás, a própria fundação da USP, nos anos 1930, é consequência em parte do Modernismo.

Há críticas aos modernistas como integrantes da elite cafeeira que ignoraram a violência da escravidão e produziram imagem caricata do índio. Você concorda?

Eu precisaria conhecer melhor essa bibliografia recente. Sobre a origem social dos intelectuais e escritores modernistas, a grande referência é a crítica de Sergio Miceli. Dizer que eles, ou vários deles, pertenciam à classe dominante é uma obviedade. Como argumentou Alfredo Bosi, um tema central na prosa modernista brasileira, particularmente a regionalista, é a decadência dessa classe de proprietários e o destino urbano de seus descendentes. A própria poesia de Drummond expressa a tensão permanente com a herança patriarcal proprietária. Não sei o que se pretende dizer com a “denúncia” de que o índio modernista é caricatural. Estão falando de quê? De “Macunaíma”? De “Cobra Norato”, do Raul Bopp? Da antropofagia oswaldiana e depois tropicalista? Eu poderia até concordar com esse termo, desde que não pejorativo, mas preferiria dizer visão estética ou estetizante, já que ela não provinha de uma relação direta com os índios e, sim, de leituras da mais avançada etnografia da época. Mário e Oswald de Andrade praticamente inauguraram a percepção da antropologia como central à possibilidade de compreensão da brasilidade. Eles inocularam na cultura brasileira a antropologia, a psicanálise e a história colonial.

A produção literária atual se alimenta do Modernismo? Ele é bananeira que já deu cacho? O que ocorre de importante, hoje, e não foi pensado pelo Modernismo?
A melhor colocação sobre a relação entre o Modernismo de 1922, o seu presente (anos 1940) e o futuro é a célebre conferência de Mário de Andrade, que faz o balanço do movimento, justamente naquele momento em que o movimento está deixando de ser revolução e está virando cultura oficial estatal e acadêmica. Nesse sentido, as obras, mas não necessariamente a ideologia, produzidas nos anos 1920 e 1930 nunca deixarão de ser bananeira que pode inspirar gerações posteriores, como inspirou nos anos 1950, 1960, 1970 e, talvez, ainda, 1980. Eu diria que, a partir dos anos 1990, o Modernismo continuou sendo uma cultura hegemônica, mas as novas gerações especificamente literárias tinham por referência, na prosa, os autores dos anos 1970 e, na poesia, a busca de novos poetas estrangeiros, por meio das traduções que extrapolaram em muito o paideuma concretista, esse já um ruído no Modernismo oficial. Eu diria que a maior diferença entre a brasilidade modernista e a brasilidade atual é que se os modernistas eram intelectuais redescobrindo o Brasil e aposentando as visões oitocentistas, hoje em dia o grande fenômeno é a ascensão das próprias classes marginalizadas – o índio fala pelo índio, não precisa de um poeta branco que fale por ele e assim por diante.