Um dos mais celebrados escritores portugueses da atualidade, José Luís Peixoto chega a Belo Horizonte para participar, nesta quarta-feira (9/2), do projeto Sempre um Papo, por meio do qual promove seu livro “Autobiografia”. Lançada em 2019, a obra, que tem José Saramago como personagem, ganhou uma reedição pela Companhia das Letras no ano passado, antecipando o centenário do Nobel de Literatura português, que se comemora neste ano.
Entre as 18h e as 20h, na parte externa da Livraria Quixote, na Savassi, haverá uma sessão de autógrafos, aberta ao público, e às 20h30, sem a presença de plateia, Afonso Borges, idealizador do Sempre um Papo, entrevista o autor. A conversa, no espaço interno da própria livraria, será transmitida ao vivo pelo canal do YouTube do projeto. De acesso gratuito, o bate-papo contará com tradução simultânea em libras e audiodescrição.
Na entrevista a seguir,, Peixoto fala de “Autobiografia”, da importância que José Saramago teve em sua vida, de sua relação com a escrita em diferentes gêneros e do atual cenário da literatura em Portugal e no Brasil.
À guisa de alerta aos incautos: o livro “Autobiografia” não é uma autobiografia, certo?
Não é uma autobiografia, é um romance que tem como personagem principal José Saramago. É um livro que propõe uma série de cruzamentos entre ficção e documentos biográficos e históricos também. Esse título, “Autobiografia”, tem um pouco a ver com esse jogo. Além do Saramago, existe no livro um outro personagem, que também se chama José, que é um jovem escritor. Então, há também o jogo com o fato de eu me chamar José e ter conhecido Saramago com a mesma idade desse meu personagem, com toda a carga e a importância que isso teve para minha vida.
Qual foi o mote ou a inspiração para escrever “Autobiografia”?
No passado, eu já tinha escrito outros livros em que fazia o jogo entre realidade e ficção. Com este livro, houve um momento em que tive a ideia de criar uma ficção a partir da figura de Saramago. Ele foi muito importante na minha vida; eu o conheci com 27 anos, quando ganhei o Prêmio Literário José Saramago, em 2001. Tive a oportunidade de, a partir de então, ter uma convivência de quase 10 anos com ele, até seu falecimento. A partir dessa ideia, comecei a construir todo o resto da trama, que em muitos aspectos se liga com a obra de Saramago, com a cidade de Lisboa, com a Portugal dos anos 90, que é o período descrito no romance, e com a própria vida de Saramago. Neste momento, podemos mesmo dizer que é um livro que se relaciona com o último século, porque 2022 é quando Saramago faria 100 anos.
O que representou para sua trajetória literária ter vencido o Prêmio Literário José Saramago em 2001?
Foi uma mudança incrível, não só na minha carreira literária, mas na minha vida. Ganhei esse prêmio com meu primeiro romance, “Nenhum olhar”, e eu era totalmente desconhecido em Portugal e em toda parte. Quando ganhei esse prêmio, isso chamou a atenção de muita gente, que ficou curiosa para ler esse livro. A partir daí pude também ter esse contato com Saramago, o que foi muito marcante. Era um autor que eu admirava ao longe, e a partir desse momento era uma pessoa com quem eu conversava, com quem cheguei a viajar. A partir daí, todos os livros que publiquei foram lidos de outra forma, tiveram uma atenção diferente. Eu profissionalizei minha escrita a partir desse prêmio.
E o que o próprio José Saramago representa no seu percurso como escritor?
Hoje em dia, quando penso em Saramago, o que mais me toca, o que mais me lembro com carinho e com mais intensidade foram justamente os momentos em que estivemos juntos, as conversas que tivemos, os momentos pessoais compartilhados. Mas a obra dele foi muito importante para mim. Logo no primeiro livro que escrevi e que ganhou o prêmio, já tinha influência da escrita dele. Hoje, um livro como “Autobiografia” tem uma influência enorme de Saramago, mesmo que eu não tenha tentado em nenhum momento escrever como ele, não é disso que se trata, mas pela forma de viver essa experiência da literatura. Um dos elementos fundamentais da proposta dele era a forma como escrevia a partir da convicção, daquilo em que acreditava piamente. Isso é quase que um conselho, fazer esta pergunta: por que escrevo? O que tenho que dizer aos outros?. Esse pensamento chega a mim a partir do impacto que ele teve na minha vida.
O que mais chama a sua atenção na escrita de Saramago? O que você identifica como principal característica de sua obra?
Se tivesse que identificar uma característica como sendo a principal da obra dele, eu diria que é seu caráter humano. O humano está sempre no centro do seu trabalho, é sempre uma afirmação de crença no ser humano, mesmo que às vezes se descrevam alguns processos, algumas coisas menos positivas, mas, em última análise, o que encontro ali mais presente é sempre essa grande convicção no ser humano. Isso tem a ver com suas ideias políticas e sociais, mas também transcende um pouco essa dimensão. É uma forma de entender o próprio mundo e a vida.
Em sua opinião, há algum livro que sintetize melhor as ideias, as proposições e a forma de escrever de Saramago? Qual é o seu predileto?
Essa resposta muda pelo menos todos os meses. Sempre estou lendo a obra de Saramago, e ele escreveu livros muito diversos. Hoje, minha resposta seria, talvez, “Memorial do convento”, um romance histórico, mas que fala de questões de todos os tempos. A literatura mais elevada transcende o tempo e o espaço. Isso de uma forma muito confirmada acontece na obra de Saramago, e com esse romance em particular.
Você transita por várias searas da literatura – romance, poesia, prosa, literatura infantojuvenil, livros de teatro e relatos de viagens. O que o move de um lugar a outro, de uma linguagem para outra?
Pelo menos até aqui, minha vontade de escrever em vários gêneros vem de uma necessidade de me renovar. Depois de eu escrever um romance, para mim é muito útil trabalhar num livro de poesia ou numa peça de teatro, o que, aliás, acabou de acontecer. Cada um desses gêneros vem com uma bagagem diferente, vem com novas ideias, e trazer coisas novas é importante para desenvolver cada projeto. Se me parecer que estou a fazer o que já fiz, sinto que não há evolução, e isso é muito desmoralizante.
Quando você resolveu que queria ser escritor? Ou quando foi tomado por esse desejo?
Eu comecei a ter vontade de escrever na adolescência, numa altura em que muita gente inicia as tentativas de escrita, o que é muito útil; é uma idade de se descobrir muitas coisas. Não imaginava que ia ter a escrita dessa forma na minha vida. A partir de certa altura, ainda na adolescência, achei que iria sempre escrever, mas sem projetar que poderia vir a ser um profissional da escrita. Depois veio o prêmio, que foi muito importante nesse sentido. Quis sempre manter a escrita como uma atividade que viabilizasse minha existência de maneira concreta. A partir dos 17 ou 18 anos, eu já sabia que ia sempre escrever, e ter descoberto isso foi uma das maiores alegrias da minha vida. Tinha muito claro qual era meu horizonte, qual a direção que eu tinha para seguir.
Como você avalia o atual panorama da produção literária em Portugal? É um cenário pujante?
Eu acho que sim. No Brasil, têm chegado muitas dessas vozes, e elas são lidas com bastante atenção. Neste momento, tanto na prosa quanto na poesia, mais concretamente na prosa e no romance, existe um número forte e coeso de vozes, um panorama diverso, com abordagens diferentes, mas com características comuns. Talvez a mais aglutinadora tenha a ver com o momento histórico que esse grupo de pessoas que publica hoje em Portugal viveu com a mudança do regime, em 1974. Quer dizer, falo do que essa geração não viveu, no meu caso e no caso de outras pessoas. Nasci em 1974, alguns meses depois dessa grande mudança que aconteceu em Portugal (a Revolução dos Cravos, que derrubou o regime ditatorial salazarista). No meu caso e no caso de outros que eram ainda crianças, nascemos num período completamente diferente daquele que viveram as gerações que nos antecederam, que atravessaram todo o período da ditadura com censura, perseguições políticas, limitações das mais diversas formas de liberdade. Quem publica atualmente em Portugal, na sua grande maioria, nasceu e cresceu num período que é resultado dessa grande mudança. Foram 50 anos de ditadura, foi muitíssimo marcante para a história de Portugal, e depois, nos anos 80 e até hoje, com Portugal entrando na União Europeia, já tivemos uma realidade muito diferente, o que resultou numa literatura que tem características próprias.
E com relação ao Brasil, você acompanha o que se tem produzido de obras literárias por aqui?
Tento acompanhar, mas o Brasil é realmente um país gigante, no qual muitas vezes os estados são de um tamanho que, a partir da nossa proporção, são quase como países. Pensando em Minas Gerais, a pujança literária é comparável à de um país europeu, porque o estado tem esse tamanho e esse dinamismo. É sempre muito complicado falar em Brasil, porque do Rio Grande do Sul ao Pará existem inúmeras realidades, inúmeros caminhos a serem desenvolvidos. Tentar acompanhar essa produção literária é fascinante, ainda que não seja propriamente fácil devido a essa dimensão do país. Ainda assim, são muitos os autores e autoras que sigo de forma próxima e aos quais, hoje em dia, por meio da internet, conseguimos ter um acesso muito mais facilitado. Essas novas tecnologias trouxeram uma proximidade que acaba por nos colocar a todos mais em contato. Aqui no Brasil, atualmente, sabe-se muito melhor o que é feito em Portugal ou nos países africanos de língua portuguesa, assim como o contrário também é verdadeiro, o que acaba por trazer novos olhares para a construção literária feita em cada um desses pontos.
O que você projeta para um futuro próximo? Quais são seus planos para o restante deste ano?
A peça de teatro que terminei de escrever vai ser apresentada em março. Ela não foi publicada em livro, mas os atores já estão ensaiados. Estou sempre a trabalhar. No Brasil, vai ser publicado um romance que estreou em Portugal no ano passado, “Almoço de domingo”, que tem muitas ligações com “Autobiografia”. Mas estou a trabalhar em novos projetos, tenho um romance já a ser construído, estou sempre ocupado.
“AUTOBIOGRAFIA”
• José Luís Peixoto
• Companhia das Letras (272 págs.)
• R$ 69,90
• Noite de autógrafos com José Luís Peixoto, nesta quarta-feira (9/2), das 18h às 20h, na Livraria Quixote (rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi), aberta ao público. A partir das 20h30, o autor é o convidado do Sempre um Papo, com transmissão pelo canal do projeto no YouTube.