Uma coincidência marcou a entrevista com o ator Jovane Nunes, feita na semana passada, para falar sobre o filme “Hermanoteu na terra de Godah”, que estreia neste sábado (12/2), no Telecine. Uma das fotos do ator Ricardo Pipo no deserto do Atacama, no Chile, que serviu de locação para o longa-metragem, foi feita em 3 de fevereiro de 2019, exatos três anos antes do bate-papo sobre o trabalho concluído.
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A estimativa da companhia é que 3 milhões de pessoas tenham assistido à peça, cuja estreia ocorreu em 1995. Com a exibição na TV, a expectativa de Jovane é que o público seja ampliado em até 20 vezes.
PARTICIPAÇÕES
O longa tem direção de Homero Olivetto e reúne, além de Ricardo Pipo e Jovane Nunes, Adriano Siri, Welder Rodrigues, Victor Leal e Adriana Nunes, todos do elenco da companhia Os Melhores do Mundo, e ainda Marcos Caruso, Milton Gonçalves e Jonas Bloch em participações especiais.Curioso que o sucesso de Hermanoteu surgiu com as cópias piratas do DVD da peça, lançado em 2009. “Muita gente que não ia ao teatro passou a ir por uma curiosidade que o DVD causou. Mas muita gente ainda não foi ao teatro porque o teatro é caro. Hoje as pessoas não conseguem comprar o botijão de gás, comida... O teatro fica numa situação lá para o final da fila”, diz Jovane, que repete a parceria com Vítor Leal, seu colega de trupe, na assinatura do roteiro para cinema. Os dois são autores do texto do teatro.
“Não poderia ser a mesma história do palco, porque no palco o personagem é muito passivo, não acontece nada com ele, que sofre, peregrina, e as pessoas chegam até ele para conversar. Ele precisaria de uma trajetória do herói”, observa Jovane.
“Foi preciso trazer novidades para quem já viu a peça, garantindo diversão também para quem nunca ouviu falar. O fã quer identificar coisas ali dentro do filme”, diz, citando o caso do casal Jajá (Welder Rodrigues) e Juju (Adriana Nunes), que ficou famoso no extinto programa “Zorra total” (Globo).
A reação do público à exibição do trailer do filme, na semana passada, em Brasília, após mais uma sessão da peça, deixou Jovane orgulhoso. “O pessoal delira com Jajá e Juju. Lembrei-me daquele trailer dos ‘Vingadores – Guerra infinita’ (2018), quando aparece o Homem-Aranha e o pessoal ohhhhhhhhhh! Eu falei: Pô, o Jajá e a Juju são o nosso Homem-Aranha da Marvel.”
Outra novidade é a dupla formada por Isaac e Hermanoteu. “O filme abre com os dois dando um golpe ali na praça e termina com eles juntos, voltando para casa. Acho que funcionou”, diz, dando uma informação que não tira a graça e a surpresa da história.
PIADA
O anjo analfabeto, que faz o maior sucesso no teatro, também garante boas gargalhadas no filme. “A piada é tão boa que a gente vai adaptando para o analfabeto do momento”, conta. No ano passado, em Belo Horizonte, a plateia gargalhou quando uma personagem diz que o anjo estudou na mesma escola em que o presidente Jair Bolsonaro. A despeito da ironia, a personagem do anjo tem uma história afetiva. “Meu pai era semialfabetizado, gostava de ler e lia o jornal em voz alta, de noite, assim: ‘Ó góvérnó vai alfalta as rua da cidade. Ó, o governo vai asfaltar as ruas!’. Quando fomos fazer a peça, eu falei: Pô, eu vou fazer esse anjo lendo igual o meu pai lia.”
O ator e roteirista observa que “grande parte da população do Brasil foi alfabetizada há muito pouco tempo. Lá pelos anos 80, 90, houve um esforço muito grande de alfabetização. Antes disso, 50%, 60% da população brasileira não sabia ler nem escrever”.
As cenas de peregrinação de Hermanoteu seriam rodadas no Nordeste brasileiro, mas o orçamento ficou tão alto que foi mais viável levar parte da equipe para o deserto do Atacama. A trupe só não imaginava que os bastidores das locações renderiam filmes paralelos. No deserto, por exemplo, onde menos chove no mundo, a equipe foi recebida com uma tempestade. “Parecia que estava caindo o mundo. Mas no outro dia o céu abriu e ficou lindo e nós fizemos (a gravação).”
Em uma pedreira, no Rio de Janeiro, um incêndio obrigou todos a saírem correndo, salvando o que pudessem. “Atores, figurantes, todo mundo levando os figurinos, até que o Corpo de Bombeiros chegou e apagou tudo. Mas não perdemos a diária (de filmagem), porque quando apagou o fogo, a gente falou: ‘Bora que tem mais duas cenas pra fazer’. E fomos em frente.”
COMPARAÇÃO
Um vídeo de uma apresentação de “Hermanoteu”, feito em 2014 e disponível no YouTube, levou Jovane a comparar Os Melhores do Mundo com Os Simpsons, desenho famoso por suas previsões do futuro. Na cena da trupe brasileira, Hermanoteu está saindo de casa quando Micalateia, sua irmã, entrega a ele itens para sua peregrinação, incluindo uma máscara hospitalar. “Dá para você ir para o México”, diz. “Tudo o que acontece hoje em dia as pessoas não dizem: ‘Oh, os Simpsons falaram disso!’”, brinca.Apesar das dificuldades do teatro, ainda mais severas com a pandemia, Jovane tem confiança na recuperação no setor. “Acho que o teatro só não sobreviveu à queda do meteoro que acabou com os dinossauros porque eu não sei se os dinossauros tinham teatro. O teatro sobrevive a tudo, sobreviveu às guerras, a todas as pestes que a humanidade já passou. Parece que ele vai e volta mais forte.”
Os Melhores do Mundo completará 27 anos de fundação neste 2022, mas a história da companhia é anterior à efeméride. Em sua primeira formação, o grupo foi batizado como A Culpa é da Mãe. Com a entrada de Adriano Siri no elenco, estipulou-se a data de aniversário. Desde então, não houve alteração do elenco, que segue em ótima convivência.
“Você vai envelhecendo, vivendo e os interesses vão mudando. Passamos daquela idade de ter aquela briga que acaba, sabe? Isso acontece quando você não experimentou nada e fica: ‘Que loucura, ai meu trabalho!’. A gente já passou por esse auge do sucesso e, graças a Deus, se estabilizou numa calmaria”, afirma.
Ao longo de sua carreira, o grupo enfrentou poucas polêmicas, surpreendentemente, sobretudo considerando que a mistura de religião com comédia nem sempre dá bom resultado. Diferentemente dos especiais de Natal do Porta dos Fundos, por exemplo, apenas um texto, “Dingou béus”, chamou a atenção de religiosos, mas virou piada.
Na peça, os reis magos se atrasam para a visita a Jesus e, quando chegam a Jerusalém, o Messias já tem 7 anos de idade. Na temporada em Brasília, o elenco começou a perceber um público que não era exatamente o da companhia, até se dar conta de que um padre tinha ido assistir à peça e recomendou aos fiéis não irem vê-la. “Ele dizia: ‘Não assistam! Não assistam! As pessoas ficam rindo, ficam morrendo de rir, mas é blasfêmia, rindo de blasfêmia. Não é pra ir de jeito nenhum, que é o riso do pecado’.” Bastou para o teatro encher.
Base do humor do grupo, o improviso em certas situações acabou sendo definitivamente incorporado ao texto, tanto do teatro quanto do cinema. Um exemplo é a cena em que César (Jovane Nunes) quer transformar Hermanoteu em senador. A personagem solta um “uai, sô!”.
“O 'uai, sô' é de Minas, mas já é uma coisa popular no Brasil inteiro. Então, todo mundo no Brasil, quando vê aquilo, ri”, diz Jovane, lembrando que a expressão foi usada pela primeira vez em uma das apresentações no Palácio das Artes. “É nóis!”