O álbum “Antes que tudo acabe”, que será lançado nesta terça-feira (15/2), com a chancela da gravadora Biscoito Fino, sela uma parceria firmada há mais de 15 anos entre o cantor e compositor Moacyr Luz e o poeta Rogério Batalha, que agora, finalmente, têm um trabalho conjunto para chamar de seu.
Os dois já tinham músicas gravadas por outros cantores e cantoras, de forma dispersa, e com “Antes que tudo acabe” chegam a uma síntese, conforme aponta Moacyr. “É uma obra, um conjunto de músicas que tem uma tristeza, uma certa melancolia”, diz.
Trata-se de um disco de canções – não necessariamente ligadas ao universo do samba, no qual Moacyr é mais reconhecido – gravadas por diferentes intérpretes, sobretudo de uma novíssima geração, acompanhados apenas pelo violão de Carlinhos Sete Cordas.
Figuram nesse rol Beth Dau, Marina Iris, Douglas Lemos, Branka e Alice Passos. De uma geração já mais experiente e consagrada comparecem Moyseis Marques, João Cavalcanti e Humberto Effe, do grupo Picassos Falsos. O próprio Moacyr também empresta sua voz a uma das faixas.
O músico conta que, durante o processo de feitura do disco, sentiu que precisava de vozes novas “que abraçassem o projeto com o viço da mocidade, com aquela coisa de cantar com o desejo”. Ele considera, no entanto, que atualmente existe um diálogo mais sintonizado entre as diferentes gerações, o que garante a unidade do repertório.
"Houve um momento em que você colocava o microfone e gravava tudo puro, e ali acho que a música brasileira experimentava mais. Penso que hoje chega a ser uma novidade você gravar um disco de voz e violão como esse foi gravado, explorando levadas diferentes, harmonias diferentes. 'Antes que tudo acabe' é antes que a música acabe, vire uma coisa só, pasteurizada, forjada numa linha de montagem"
Moacyr Luz, compositor
CONHECIMENTO
“A gente vive numa velocidade de conhecimento muito grande. Uma criança de 5 anos hoje sabe 10 vezes mais do que uma criança de 5 anos de uma década atrás. Tudo se aproxima agora em termos de geração. A turma que tem 40 conversa igual com a turma que tem 60. Então, João Cavalcanti, Moyseis Marques e Humberto Effe, esses nomes mais experientes, entram fazendo essa ligação entre mim e os novos intérpretes”, afirma.Ele conta que, para algumas das jovens cantoras, mostrou três ou quatro opções do repertório, para que pudessem escolher o que queriam cantar. “Eu queria que elas se sentissem à vontade”, diz. Em outros casos, uma determinada faixa já foi com destinatário certo. É o caso de “A ciranda que inventei”, defendida por Moyseis Marques.
“Essa já veio com nome e endereço para mim. O Moacyr achou que ficava bem na minha voz, o que tem a ver com a admiração que tanto ele quanto eu sempre tivemos pelo Wilson Moreira, que foi a inspiração para essa composição. Na verdade, tínhamos verdadeira devoção pelo Moreira, era uma espécie de orixá vivo”, diz Marques.
“Recebi o convite e aceitei imediatamente, porque Moacyr também sempre foi para mim um ídolo, que se tornou parceiro, porque temos algumas músicas juntos, e hoje posso dizer que é um velho amigo”, acrescenta.
E se o assunto é parceria, Moacyr lembra que conheceu Rogério Batalha numa ocasião muito especial, e que logo de cara a obra do poeta o cativou. Ele diz que se lembra exatamente da data, porque foi quando fez um show com Aldir Blanc, há quase 20 anos, na Lona Cultural, em Vista Alegre, bairro da zona Norte do Rio de Janeiro onde Batalha nasceu. “O Aldir Blanc sair de casa já era uma coisa rara; sair para se apresentar, então, era um acontecimento”, diz Moacyr.
POEMAS
“Na saída do show, o Rogério veio, todo tímido, e me deu um livro de poemas. Um deles, chamado ‘Malícia’, me deixou particularmente encantado e eu o musiquei”, conta, referindo-se à faixa que acabou entrando no repertório de “Antes que tudo acabe”, cantada por Douglas Lemos, com quem, diga-se, Moacyr lançou um álbum de inéditas no ano passado, chamado “Jogo de cintura”.Segundo o cantor e compositor, seu critério para escolher e musicar os poemas – alguns remontando ao final dos anos 90 ou início dos anos 2000 – que entraram no álbum foi puramente seguir a intuição. Ele ressalta que Batalha tem uma lírica muito particular e que é admirado por muitos de seus pares.
“Uma vez, estive com o Antonio Cícero, que me disse que é louco por ele, pelas rimas diferentes que ele propõe. O Waly Salomão (1943-2003), com quem trabalhei em alguns projetos, também admirava muito o Rogério. Ele é muito ácido, tem rimas que surpreendem”, diz, acrescentando que o fato de ter nascido e crescido no subúrbio carioca moldam o olhar de Batalha e, consequentemente, o que ele escreve.
“O fato de ele ser do subúrbio está expresso nos poemas, tem a coisa do quintal de casa, do terreno baldio, da rua com paralelepípedo, da cadeira posta para o lado de fora do portão”, aponta. Moyseis Marques, que nasceu no bairro Vila da Penha, também na zona Norte, vizinho do Vista Alegre, faz coro com Moacyr, ao analisar a presença dessa geografia do Rio de Janeiro na obra do poeta.
"Falar do subúrbio como ele (Rogério Batalha) fala é muito importante, porque é um espaço que é mais retratado na crônica de comunidade, de favela. O subúrbio tem um lirismo, uma forma de viver que é muito importante no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, que é sempre cantada através de Ipanema, da zona Sul, do Cristo Redentor. O Rogério tem isso, esse lirismo suburbano, esse outro lado da câmera pelo qual se vê Jesus de costas"
Moacyr Luz, compositor
LIRISMO
“Falar do subúrbio como ele fala é muito importante, porque é um espaço que é mais retratado na crônica de comunidade, de favela. O subúrbio tem um lirismo, uma forma de viver que é muito importante no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, que é sempre cantada através de Ipanema, da zona Sul, do Cristo Redentor. O Rogério tem isso, esse lirismo suburbano, esse outro lado da câmera pelo qual se vê Jesus de costas. É uma ótica que me interessa e que acho que pode ser mais explorada na música brasileira”, afirma.Se Moyseis não poupa elogios a Batalha, tampouco os economiza para falar de Moacyr Luz. No seu entendimento, trata-se de um operário da composição, que produz de forma compulsiva e incansável. “Ele desenvolve uma parceria com um determinado compositor e mergulha com profundidade. Teve isso com o Aldir Blanc, que talvez tenha sido o principal parceiro dele, e tem isso com todos os outros. Ele acorda todo dia e escreve, logo de manhã cedo, a partir das 6h. O resultado é que Moacyr tem um repertório muito ramificado; cada vez que se muda o parceiro, você vai admitindo texturas diferentes, e agora ele está aí experimentando mais uma textura com o Rogério.”
O conjunto de músicas registrado em “Antes que tudo acabe” não é tão acessível, segundo Moacyr, por se tratar de um trabalho feito com liberdade, sem nenhuma preocupação com o mercado. “A gente não se furtou a fazer do jeito que a gente queria”, diz, destacando que o simples fato de ser um álbum voltado para o universo das canções abre muitos caminhos e possibilidades.
MEMÓRIA
“Eu estou sempre muito envolvido com o samba, mas essa é uma memória musical que tenho na minha cabeça e que segue comigo. Já gravei com Nana Caymmi, com Maria Bethânia, com Leila Pinheiro, tudo canção. E acho que esse repertório se encaixa muito bem nesse formato voz e violão, especialmente porque Carlinhos Sete Cordas é uma orquestra, um músico exímio, que dispensa exibicionismo; tem a medida certa de acompanhar a pessoa e ser virtuoso. Isso é brilhante”, opina.O título do disco alude diretamente aos rumos que a música produzida no Brasil – e, de resto, em todo o mundo – vem tomando ao longo dos últimos anos, segundo Moacyr. Ele considera que esteja ficando tudo cada dia mais tecnicamente complicado e, paradoxalmente, mais pobre.
“Houve um momento em que você colocava o microfone e gravava tudo puro, e ali acho que a música brasileira experimentava mais. Penso que hoje chega a ser uma novidade você gravar um disco de voz e violão como esse foi gravado, explorando levadas diferentes, harmonias diferentes. ‘Antes que tudo acabe’ é antes que a música acabe, vire uma coisa só, pasteurizada, forjada numa linha de montagem”, aponta.
O ritmo compulsivo que Moyseis Marques identifica no processo de composição de Moacyr Luz esteve particularmente aflorado desde a chegada da pandemia. Além de “Jogo de luz”, que lançou com Douglas Lemos no ano passado, e da participação no álbum-tributo “Aldir Blanc inédito”, também lançado em 2021, ele diz que se envolveu, ao longo dos dois últimos anos, em diversas frentes de criação.
“Gravei com Diogo Nogueira, com Mart’nália, fiz sambas-enredos para Mangueira e para a Paraíso do Tuiuti, já escolhidos, que vão estar na avenida; compus uma declaração ao Cristo Redentor e uma ode à vacina; fiz música com Martinho da Vila, com Xande de Pilares, com Fagner”, cita, destacando que tem muita coisa para ser apresentada ao público. “Essa história com o Fagner mesmo, isso vai gerar uma boa surpresa.”
Ele conta que também está às voltas com um projeto com o DJ e produtor Marcelinho da Lua, intitulado “Luz da lua”, que deve ser lançado ainda neste ano. “Aí já é uma outra história, porque mistura MPB tradicional com recursos da tecnologia”, diz, acrescentando que a produção não para. “Neste último fim de semana mesmo, compus outra com o Fagner e fiz uma quarta música com o Cristóvão Bastos. Minha rotina é essa. Eu gosto de compor, acordo às 6h e vou até o meio-dia nesse processo, depois eu paro para beber”, diz.
FAIXA A FAIXA
Confira as canções* do disco e seus intérpretes
“Baluarte” – Beth Dau
“Pobre orquídea” – Humberto Effe
“Eu sou da roça” – Mingo Silva
“Malícia” – Douglas Lemos
“Dona de tudo” – Branka
“A ciranda que inventei” – Moyseis Marques
“Eu já vi chover” – João Cavalcanti
“A tarde” – Moacyr Luz
“Gratidão” – Marina Iris
“Pensando bem” – Alice Passos
*Todas as composições têm letra de Rogério Batalha e música de Moacyr Luz
“ANTES QUE TUDO ACABE”
• De Moacyr Luz e Rogério Batalha
• Vários intérpretes
• Gravadora: Biscoito Fino