Jornal Estado de Minas

CINEMA

Vingança (dos ricos) com as próprias mãos é o tema do longa "A jaula"


Alguns anos atrás, um roteiro argentino chegou à produtora paulistana TX Filmes. Os autores eram Mariano Cohn e Gastón Duprat, em alta pelo sucesso do filme “O cidadão ilustre” (2016). Para que a história de “A jaula” fosse filmada no Brasil havia um pré-requisito: tinha que ser assinada por um diretor estreante, que não tivesse outro trabalho em ficção.



Um dos sócios da TX, o documentarista e fotojornalista João Wainer, viu o roteiro como um presente. Já com ganas de trabalhar com ficção, entrou de cabeça na história. Filmou “A jaula” em 2018, quando Jair Bolsonaro tinha acabado de ser eleito – a pandemia atrasou o lançamento do filme, que chega nesta quinta-feira (17/2) aos cinemas.

“Naquele momento, imaginei como o Brasil estaria quando o filme fosse lançado. Pensei que o ‘cidadão de bem’ estaria cada vez mais empoderado, com a vingança saindo do campo das ideias e entrando para o da realidade, já que havia um governo estimulando as pessoas a fazerem justiça com as próprias mãos. Infelizmente, eu estava certo”, diz Wainer.

O filme, lançado quase quatro anos depois de rodado, é de uma atualidade gritante. Chay Suede é Djalma, um ladrão da periferia de São Paulo que entra com facilidade em um SUV preto numa rua pacata. Sua intenção é roubar o equipamento de áudio, algum pertence que esteja no veículo e dar o fora. Com muita surpresa, ele descobre que consegue entrar, mas não sair. 




Alexandre Nero interpreta o médico que controla remotamente o seu veículo blindado na trama do longa, cujo roteiro original é argentino (foto: STAR/DIVULGAÇÃO)

VINGANÇA 

O carro pertence a um médico, Henrique (Alexandre Nero), um autodenominado “cidadão de bem” que, depois de ter sido roubado 28 vezes, armou seu plano de vingança. Tornou o carro uma caixa-forte: todo blindado, com sistema à prova de som. Quem está de fora não consegue ouvir ou ver o que se passa dentro. 

Tudo é comandado por Henrique remotamente, que conversa com Djalma pelo sistema de som do carro. Os dias e noites passam, e Djalma permanece na gaiola, sem água, comida e ainda suscetível às torturas físicas e psicológicas infligidas pelo médico. Primeiramente a distância, e depois in loco.

O próprio Mariano Cohn filmou a história na Argentina, o longa “4X4” (2019), inédito no Brasil. Wainer manteve o roteiro original, mas com algumas adaptações, como a personagem interpretada por Astrid Fontenelle, uma âncora de programa jornalístico mundo cão, com forte direcionamento direitista. Do lado de dentro do carro, Djalma vai acompanhando o mundo à sua volta – vê um homem negro, que havia tentado entrar no mesmo carro, ser quase linchado pela população.





“A violência na Argentina é diferente da violência no Brasil. Precisei trazer uma tinta, como essa capa meio ‘bolsominion’”, comenta Wainer, lembrando que a justiça com as próprias mãos não vem do atual ocupante da presidência. “O Brasil é violento desde sempre, e caras como este aparecem de tempos em tempos. Bolsonaro é o fascista da vez.”

MALOQUEIRO 

Com o roteiro em mãos, Wainer pensou, logo de cara, em unir Alexandre Nero e Chay Suede, que tinham interpretado em 2014 o mesmo personagem, José Alfredo Medeiros, na novela “Império”. “Queria deixar o Chay, que é um cara bonito, com cara de maloqueiro. Trouxe o cabeleireiro do Mano Brown para fazer o cabelo dele, o (escritor) Ferréz para dar consultoria de gíria. Se você olhar o Chay hoje e vir o Djalma, não parece a mesma pessoa.”

As filmagens de “A jaula” fugiram do convencional. Como o filme é ambientado em um cenário único, a rua onde o carro está estacionado é cenográfica. Wainer filmou a história em ordem cronológica, acompanhando assim a degradação física do personagem. E utilizou dois carros iguais, uma Pajero. Em um dos veículos foram filmadas as cenas externas. O outro, diz o diretor, para as internas, foi todo picotado, “como um Lego”.





A violência urbana e os contrastes sociais são o grande tema de Wainer, que assinou documentários como “Pixo” (2009) e “Junho: O mês que abalou o Brasil” (2014). Entrar na ficção era o passo seguinte. “Brinco que comecei a fotografar e 10 anos mais tarde perdi o frio na barriga. Então fui para o documentário e voltei a ter o frio na barriga. Dez anos depois, quando perdi de novo, vi que era hora de começar mais uma vez”, afirma.

“A JAULA”

(Brasil, 2022, 101min, de João Wainer, com Chay Suede e Alexandre Nero) – Estreia no BH 8, às 17h e 22h; Cidade 1, às 14h (seg a quarta) 16h10, 18h30 e 20h40 (quinta e sexta e seg a quarta) e 11h, 13h10, 15h20, 17h30 e 19h40 (sáb e dom); Contagem 7, às 14h45, 16h50, 19h05 e 21h10; Del Rey 1, às 14h e 19h; Del Rey 6, às 21h20; Estação 5, às 15h45, 17h45, 19h45 e 21h45; Monte Carmo 1, às 14h30, 16h35, 18h45 e 20h50.   


QUATRO PERGUNTAS PARA…

Chay Suede,
ator

 Djalma é um personagem que exigiu muito da parte física como também da psicológica. O que foi mais difícil na construção do personagem?
Dissociar uma coisa da outra. Dissociar o pânico, o desespero da expansão do movimento é muito mais difícil do que eu podia imaginar. Tive também que conseguir o calibre necessário para que a degradação física fosse crível, constante. Ele chega ao ponto de não ter mais força, mas o grau de desespero só aumenta. Tivemos que repetir muitas vezes para conseguir o máximo de terror e pânico e o mínimo de força e energia. Foi estranho também começar a filmar sem o Nero. (Nas filmagens) Eu não estava em ligação com ninguém, havia alguém lendo o texto do Nero e eu respondia. Tive que tentar imprimir uma sujeira que a dinâmica da ligação exigia. Interpretar sozinho é muito difícil. 

O que você acha de o filme estar sendo lançado agora?
Uma das coisas mais bonitas do cinema são filmes que trazem diferentes possibilidades por terem um roteiro atemporal. Acho que ‘A jaula’ vai significar coisas diferentes em muitas épocas e lugares diferentes. Isso para mim é filme bem-sucedido. Este período que vivemos com essa escalada bizarra é longo, não é de agora, não é de quatro, 10 anos atrás, foi sendo construído tijolo a tijolo. O filme está dentro de um recorte muito maior que os últimos quatro anos. E parece que o roteiro foi escrito na semana passada, pois está muito dentro do tempo. No começo, ficamos tristes pela pandemia ter atrasado o lançamento, mas ele sair agora faz todo o sentido. 





Você vê o Djalma como um divisor de águas na sua carreira?
Em alguns sentidos. Primeiro, na dinâmica da filmagem, pois ele dividiu um paradigma que existia na minha cabeça do que precisa ser um set. E tivemos um set de filmagem atípico. Então, precisei criar novos apoios e aprender a viver sem alguns. O filme pode ir muito bem, espero que vá, e pode realmente mudar tudo para mim. Mas, para além disso, ele dividiu águas nas minhas possibilidades como ator, na sensação do que sou capaz ou não de fazer. Não sou o mesmo ator de 2018. Fosse hoje, possivelmente faria coisas dife- rentes. Isso é também a beleza do cinema: é o melhor trabalho possível que poderia ter feito naquele momento.

Passaram-se 10 anos desde que você estreou na novela “Rebelde”. Tornou-se conhecido do público por causa de novelas, mas no cinema tem dado preferência a filmes mais autorais. Está onde imaginava estar?
Fui quebrando pedrinha por pedrinha. Quando terminei “Rebelde”, quis trabalhar com algo em que minha participação fosse maior na parte criativa. Voltei a compor, escrever música, mas a profissão de ator me chamou de volta por mil motivos. Quando fui fazer “Império” (2014), tive contato com um professor de atuação pela primeira vez. O (argentino) Eduardo Milewicz, que é fantástico, percebendo a minha crueza, me colocou nos ensaios de todo mundo que estava na novela. Foi um negócio diferente, pois vi alguns dos atores que considero os maiores do Brasil se alongando de moletom. Foi outro contato com a experiência de ser ator e vi que toda a minha criatividade poderia estar ali. Então, fui correr atrás de trabalhar com quem mais admirava. Tive oportunidade de trabalhar com grandes artistas e não deixar escapar possibilidades menores. Estar no set da Daniela Thomas, por exemplo (ele fez uma pequena participação em “O banquete”, de 2018, que também fala do momento político-social do Brasil), me trouxe muito aprendizado, que foi além da quantidade de cenas que eu teria.