Se depender do teatro, a Chicago dos anos 1920 não está tão distante dos nossos dias. Se hoje as redes sociais são endereço certo de celebridades instantâneas, naquele cenário até os criminosos competiam para serem a sensação do momento. Velma Kelly e Roxie Hart, as assassinas de Chicago ou as pecadoras cintilantes como ficaram conhecidas, são personagens clássicas de uma história que, desde sua primeira temporada, em 1975, nos Estados Unidos, atrai os holofotes.
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Paulo Szot, único brasileiro dono de um Tony, o Oscar do teatro americano, é Billy Flynn, o advogado, que, além de lutar pela liberdade das assassinas, também quer seus 15 minutos de fama transformando tudo em espetáculo midiático. “É interessante fazer um (texto) original e depois acrescentar língua que tem identidade forte como é o português”, observa ele, um apaixonado pela dramaturgia, coreografia e música do show.
FORÇA TEATRAL
A montagem brasileira, dirigida por Tânia Nardini, que assina as direções fora dos Estados Unidos, reúne 23 atores e 14 músicos. O texto é tradução fiel ao original de Fred Ebb e Bob Fosse, que também assina a coreografia.Por entrevista via Zoom, na semana passada, os três atores contaram como foi o primeiro encontro com Chicago. Carol, que também tem formação de bailarina, diz que o espetáculo é o sonho de quem, como ela, começou muito cedo no teatro e no balé. “Todo bailarino ama 'Chicago', no qual você tem que atuar, cantar, dançar muito bem e ainda ter a veia cômica para contar essa história”, reconhece.
Foi durante uma de suas férias da Banda Eva, em Nova York, que Emanuelle viu o musical pela primeira vez. “('Chicago') marcou muito por ser uma peça que tem tanta força teatral, em que a história é muito importante para as alegorias incríveis que os musicais da Broadway tem. Depois vi o filme, com músicas incríveis, atores ótimos, fiquei ainda mais fascinada.” A admiração com a obra cresceu com o primeiro contato da atriz com o texto. “Achei que era hora de me lançar nesse desafio, que está sendo maravilhoso.”
A música foi o primeiro caminho que levou Szot ao universo de Velma, Roxie e Billy. Mas a paixão pelo universo de “Chicago” foi sacramentada quando assistiu a versão do espetáculo em Paris, com direção de Tânia Nardini. Szot estava em Roma, com a “Ópera viúva alegre”, e aproveitou uma folga para ver de perto o musical.
PROTOCOLOS
Carol, Emanuelle e Szot não escondem os momentos de ansiedade pelo início da temporada, que, devido à pandemia, foi adiada algumas vezes. Na primeira semana, depois da estreia, Carol lembra que os colegas diziam que parecia que estavam há meses em cartaz. “Eu dizia: 'Nossa que bom!'”, comenta, lembrando que a expectativa cresceu quando surgiu a nova variante do coronavírus. “Nossa equipe, nosso elenco, seguem os protocolos. A pandemia não acabou ainda, infelizmente, mas estamos aprendendo a conviver com isso.”A primeira audição para Chicago foi em janeiro de 2020. Pouco depois, tudo foi suspenso. “Ficamos dois anos sem se encontrar”, recorda Carol. O retorno foi aos poucos. Primeiro os encontros com a equipe de figurino, depois, em novembro do ano passado, os ensaios começaram apenas com as duas atrizes.“Foi quase um laboratório”, compara. O restante do elenco começou os ensaios cinco dias depois.
Para Emanuelle, apesar dos adiamentos, Velma esteve no seu imaginário desde a primeira vez que teve contato com a personagem. “Vivo intensamente o trabalho, mas na hora que vai estrear acredito na magia (do teatro). Acho que é o momento que a gente tem que realmente se lançar no abismo de ser artista, sentir alegria e prazer. Porque, para mim, esse é o grande lance de trabalhar artisticamente. Fiz esse pacto comigo mesmo, desde que estreamos de fazer disso algo orgânico e gostoso. E, graças a Deus, consegui.”
“Sofremos dois anos afastados”, lamenta Sotz, que, seguindo os protocolos, assim como os colegas, tanto no Brasil quanto em Nova York, mantém a máscara no rosto até o momento de entrar no palco. “Testes todas as semanas é nova realidade que torna possível a gente fazer o que ama.” Szot diz que nunca em sua experiência de vida se viu tranquilo fazendo espetáculo. “Antes de começar fico tenso. No momento que começa, as tensões vão embora. Isso é a mágica do teatro. Pessoalmente, para mim, existe mais tensão na preparação, no que antecede, do que quando a cortina se abre.”
O teatro musical está presente na carreira do trio que reconhece o valor do gênero. “Ele é importante para a nossa cultura e na geração de emprego a muita gente. 'Chicago' emprega mais de 100 famílias”, defende Carol. Emanuelle reconhece o talento dos produtores e artistas incríveis que fazem girar a roda do teatro musical no Brasil. “Já me encantava com dedicação e disciplina de alguns colegas. Profissionais competentes, dedicados, resilientes porque fazer arte no Brasil não é moleza.”
LÍNGUA PÁTRIA
Todas as canções são apresentadas em português, o que para Carol é recompensador. “A embocadura do inglês é muito mais fácil para cantar. Mas é muito gratificante cantar em português, contar essa história em português, porque somos brasileiros. A música é uma continuação da história e nossas versões são ótimas. É um musical americano e não podemos abrasileirar muito. Sermos brasileiro já basta”, constata.No início dos ensaios, a língua também foi uma questão para Szot, que aprendeu tudo sobre o personagem em inglês. “Ter a oportunidade de traduzir e fazer Billy Flynn na minha língua foi um sonho, é um papel de muita atividade linguística. O Billy é muito articulado, fala bastante, tem planos engenhosos”, enumera. “Além da responsabilidade de se fazer bem o texto, existe (em casos de produções internacionais) a preocupação para que seja compreendido. Pelo menos em português, essa preocupação fica menor porque é minha língua nativa”, pondera.
Szot reconhece que a maior dificuldade é tentar esquecer o inglês e reaprender o papel, que ele viveu por quatro meses na Broadway, em português. “No meio dos ensaios tropeçava. Até hoje solto um hello no lugar de um olá. Acontece, é real, mas não é um erro tão condenável. Me cobro muito e quero fazer a versão como deve ser feita.”
Com as mudanças de data de estreias, Szot e Emanuelle precisaram reorganizar alguns compromissos. No início do mês, a atriz deu um pulo na Bahia, onde oficializou sua união com o modelo mineiro Fernando Diniz. “Arrumei uma folguinha e fui casar”, diverte-se. “Estamos juntos há um tempo, mas, com os adiamentos de 'Chicago', calhou no meio desse turbilhão. Mas foi na hora certíssima. Foi tão maravilhoso depois de um momento duro como o que estamos vivendo, no qual precisamos estar atentos e fortes.”
SONHOS REAIS
Szot por sua vez, fará pausa de uma semana para participar da montagem de “La bohème”, em Porto Rico, compromisso firmado há um tempo. Ele é o único brasileiro com um Tony, o maior prêmio do teatro americano, na estante. Por seu papel em “South Pacific” foi escolhido o melhor ator em musical de 2008. “É inegável que o Tony dá um reconhecimento gigantesco. Não só para mim, mas o prêmio continua sendo de grande importância para os artistas brasileiros que sonham um dia em poder sair do Brasil, poder ir para a Broadway, cantar em outros lugares”, opina. “Foi de alguma maneira uma validação de que não precisamos ficar só no sonho, que de repente é possível também.”Quem acompanha a música erudita em Belo Horizonte já ficou admirado com a performance do barítono, que fez sua primeira apresentação na capital, em 2003, na montagem de “O barbeiro de Sevilha”, com direção de Carla Camurati, no Palácio das Artes. Voltou outras vezes nas óperas “La Traviata” e “Romeu e Julieta”. Apresentou com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, sob regência do maestro Fábio Mechetti. “Adoro Belo Horizonte. É uma delícia estar nessa cidade”, declara, sem saber quando voltará a BH.