Jornal Estado de Minas

FOLIA MODERADA

Dois nomões do carnaval de rua de BH contam como se adaptaram a 2022



Para a cantora e compositora Aline Calixto, criadora do Bloco da Calixto, este é o carnaval do possível. Para Gustavo Caetano, fundador e regente do Bloco Samba Queixinho, é o carnaval da reinvenção.



A soma dos dois pontos de vista, vindos de figuras emblemáticas da folia na capital mineira, verdadeiros operários da festa, talvez dê uma dimensão mais precisa de um cenário em que, por um lado, não há, oficialmente, blocos na rua, em razão de um quadro epidemiológico ainda preocupante, e por outro, já é possível, com o avanço da vacinação, a realização de festas fechadas, seguindo os protocolos sanitários.

Eventos de maior vulto, voltados para grandes públicos, estão na mira de embargos pela aglomeração que provocam, mas as pequenas festas povoam o calendário cultural da cidade neste período de Momo.

 Foi publicada na última sexta-feira (25/2) uma decisão da Justiça acatando parcialmente um pedido do Ministério Público de Minas Gerais, proibindo a realização de eventos carnavalescos que não tivessem condições de cumprir as devidas medidas sanitárias.





Mas, assim como não há restrições para que pessoas saiam às ruas – a Prefeitura de Belo Horizonte apenas disse que não haveria nenhum tipo de apoio ou estrutura para desfile de blocos –, os eventos de pequeno porte, voltados para públicos reduzidos, onde é possível efetivamente seguir os protocolos de combate à COVID-19, estão fora do raio de alcance da medida judicial.

Na última sexta, por exemplo, o Samba Queixinho promoveu uma roda no Restaurante do Ano, tendo como convidada Aline Calixto. Ela voltou a se apresentar no sábado, em uma roda de samba no Santo Boteco.

Já a agenda do Queixinho previa a participação em uma festa particular no sábado, uma apresentação na Amadoria ontem e uma no Catavento Cultural nesta segunda-feira (28/2), além de um show programado para o próximo dia 5, no Alpendre 70, no bairro Santa Tereza.

“Normalmente, o Samba Queixinho se apresentava com 13 pessoas no palco, nos shows que aconteciam ao longo do ano, no período anterior à chegada da pandemia. Esse formato agora é inviável, porque existe o risco do embargo. Criamos um formato roda de samba, com quatro ou cinco pessoas, o que nos permite tocar em bares, casamento, enfim, atender a todo tipo de demanda”, diz Gustavo Caetano.



Medida de sobrevivência

Ele explica que, desde o ano passado, entendeu que não haveria carnaval em 2022 e que, sem apoio institucional para o bloco, a solução seria apostar nas apresentações fechadas, como medida de sobrevivência. “A gente tem tocado muito, praticamente todos os dias. São pequenos shows, com formação reduzida, que funcionam como uma forma de a gente se sustentar e de manter a chama acesa”, afirma.

A estratégia tem dado certo. O Samba Queixinho foi convidado para participar do Festival Casa Bloco, que vai ocorrer no Rio de Janeiro entre os dias 16 e 24 de abril – mesmo período para o qual foram realocados os desfiles das escolas de samba na Sapucaí.

A programação do evento conta com Diogo Nogueira, Alcione e o grupo Cacique de Ramos. “Fomos convidados como representantes do carnaval de Minas Gerais”, ressalta Gustavo.

Apesar de conseguir manter a chama acesa, como diz, ele considera frustrante que, neste período pandêmico, em que não é possível para os blocos manterem sua estrutura econômica girando, não haja apoio financeiro do poder público ou da iniciativa privada. 





“Com a chegada dos blocos de rua, a partir de 2009, somamos forças e ajudamos a construir uma visibilidade nacional para o carnaval de Belo Horizonte. A partir do momento em que a cidade assume um protagonismo no cenário nacional, não ter o reconhecimento dos setores público e privado, não ter um suporte nesse período de pandemia é realmente frustrante”, diz.

Ele ressalta que, para o Samba Queixinho, o carnaval acontece durante o ano todo, com os eventos promovidos pontualmente e com as aulas de percussão que, numa situação de normalidade, sem pandemia, são ministradas em sua sede. “Trabalho todo o ano em torno do carnaval; essa é uma realidade para vários blocos da cidade e é uma realidade em vários outros estados”, aponta.

Neste ano, o Samba Queixinho reduziu o número de instrumentistas em suas apresentações no palco e adaptou o formato para roda de samba  (foto: DANIEL BARBOSA/EM/D.A PRESS )

Reverberação  nacional


Aline Calixto também destaca a proporção que o carnaval de rua de Belo Horizonte tomou ao longo de 10 anos. “Nós todos, dos blocos, juntos, fizemos os olhares da mídia nacional se voltarem para BH. O carnaval aqui acontece há muito tempo, com os desfiles dos blocos caricatos, mas o movimento dos blocos de rua fez com que a coisa reverberasse. Em 2017, o carnaval de BH entrou ao vivo na Globo; isso não acontecia, entrava Ouro Preto, Tiradentes, as cidades histórias, mas a capital simplesmente não estava no mapa da folia”, recorda.





Ela avalia que, em 2022, o que acontece é o carnaval que “deu para fazer”, levando-se em conta a situação sanitária. “Acredito que não é o momento de grandes aglomerações, não dá para a geral ir para a rua. Fazendo pequenos eventos, onde dá para ter maior controle, seguindo os protocolos, a gente chega numa equação do que é possível”, diz, chamando a atenção, também, para a questão econômica.

“Com esses pequenos eventos você está gerando, mesmo que numa escala menor, renda para as pessoas que são envolvidas com o carnaval. Meu bloco movimenta mais de 100 pessoas, isso falando de trabalho direto, fora os indiretos. No atual cenário, para esses shows que temos feito, envolvo no máximo 15 pessoas. É difícil. Numa situação de normalidade, quantos postos de emprego estaríamos gerando? Estamos fazendo o que é possível de ser feito.”


Praia da Estação

Aline conta que sua história com o carnaval de Belo Horizonte teve início entre o final da primeira década deste século e o início da segunda, quando se tornou frequentadora da Praia da Estação, o movimento espontâneo que se criou a partir do momento em que a Prefeitura de Belo Horizonte, então ocupada por Márcio Lacerda, aventou regular a realização de eventos em espaços públicos.





“Aquele movimento todo da ocupação dos nossos espaços, nossas praças, da indignação geral com o tolhimento vindo da prefeitura me encantou muito. Ali, naquele momento, algumas ideias já borbulhavam na minha cabeça”, conta. Ela recorda que, em 2012, mantinha o projeto Baile da Calixto e, entre 2013 e 2014, atenta à movimentação do crescente carnaval de rua da cidade, resolveu transformá-lo no Bloco da Calixto, que realizou o primeiro desfile em 2014.

“Já para o primeiro cortejo, pensei que não queria fazer só samba, daí tive a ideia de trabalhar com temas específicos a cada ano e abraçar todos os ritmos carnavalescos – marchinha, frevo, funk, um pouco de tudo. Quando criei o bloco, batizei com meu nome, porque eu já era uma cantora com carreira consolidada. Acho que fui a primeira mulher ‘puxadora’ de bloco em BH. É importante falar do papel das mulheres dentro do carnaval da cidade, foi algo que só cresceu”, aponta, observando que, a partir daquele momento até 2020, o bloco saiu às ruas ininterruptamente, todos os anos.

Festa democrática

Como cidadã e foliã, Aline acredita que o carnaval de rua de Belo Horizonte cumpre um papel muito importante para a população. “É uma festa que representa liberdade, resistência, democratização, porque é um carnaval democrático, todo mundo pode ir para a rua, a coisa de não ter cobrança... É o que eu quero e é o que todos querem, um carnaval democrático. Aqui nós temos isso.”





Para Gustavo Caetano, o carnaval de Belo Horizonte representa uma declaração de amor à cidade. “A partir do momento em que você, no carnaval, pode viver a rua, estar na rua, curtir a rua de uma forma diferente do que você faz no dia a dia, isso traz um sentimento grande de pertencimento. Em vez de viajar, a gente fica aqui, no lugar que a gente ama. É muito legal depois de tocar você ir comer no boteco que você conhece e gosta”, ressalta.

Ele conta que sua relação com o carnaval de Belo Horizonte vem desde a infância, quando, em Santa Tereza, bairro em que nasceu, ia acompanhar, com 3 ou 4 anos, o Bloco dos Inocentes, formado pelos moradores locais, que faziam a festa na praça Duque de Caxias – que ainda não tinha esse nome, chamava-se apenas praça de Santa Tereza.

“Minha família toda é do subúrbio carioca, Realengo, Itaquera, então a galera tem uma tradição de viver o carnaval o ano inteiro. Eu acompanhava os ensaios do Bloco dos Inocentes, mas, quando chegava o período do carnaval mesmo, eu ia com minha mãe para a casa que a gente tinha em Saquarema, para ver os desfiles das escolas na Praça 11 e na Sapucaí”, recorda.





Surgimento do Queixinho

Romper com a tradição de viajar para o Rio de Janeiro durante o carnaval foi o pontapé inicial para o surgimento do Queixinho, segundo Gustavo. “Em 2009, eu e uma turma resolvemos ficar em BH e montar um bloco, daí nasceu o Samba Queixinho. Naquele ano mesmo a gente foi para a rua, com um ‘desconcentra mas não sai’ no bar do Orlando, em Santa Tereza. Juntamos umas 10 pessoas ali, mas eu já levei camisa do bloco e tudo. O pessoal não acreditou. A gente virou a madrugada lá e no sábado de carnaval a gente fez um cortejo saindo do coreto do parque municipal, seguindo pela Sapucaí e terminando na Praça da Estação. Conseguimos arrastar muita gente”, conta.

Ele diz que, desde então, o Queixinho já “subiu muitos degraus”: ao longo da década passada, cresceu, aglutinou muitas pessoas em diversas funções, abriu uma sede própria, promoveu diversos eventos, criou um curso de percussão, sediou oficinas do Monobloco e fez seu nome no carnaval de Belo Horizonte. “Entendo o Queixinho como uma escola de samba de rua, uma escola fundamental para quem quer aprender a tocar um instrumento. O Queixinho foi a base formadora de vários blocos da cidade.”

Prognóstico otimista

Tanto Aline quanto Gustavo acreditam que, considerando o atual momento, é possível fazer um prognóstico otimista em relação ao futuro do carnaval de rua de BH. “Atualmente, desde 2020, vivo entre Brasil e França, onde meu companheiro está trabalhando. Por lá, daqui a pouco não vai mais precisar usar máscara e não será mais exigido o passe sanitário. Acho que estamos chegando no fim dessa pandemia – aqui no Brasil, tardiamente, porque não tivemos um dirigente com competência para agir contra ela”, diz a cantora.

“De qualquer forma, acho que estamos caminhando para a reta final, isso graças à população brasileira, que tem o hábito de se vacinar, e ao SUS. São esses dois agentes os responsáveis por uma progressiva melhoria da situação epidemiológica. Acho que em 2023 vamos ter um carnaval nos moldes aos quais a gente se acostumou ao longo da última década. Tenho esse desejo e acho que ele vai se realizar”, diz Aline.