Criado no primeiro semestre do ano passado pelo Grupo Galpão, o projeto “Dramaturgias – Cinco passagens para agora” trouxe a público, até o momento, quatro experimentos cênicos e audiovisuais resultantes de parcerias com artistas como Yara de Novaes, Pedro Brício, Newton Moreno e Silvia Gomez.
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“Eu sempre quis fazer muito esse curso, mas ainda não tinha tido a chance, então, quando começou a pandemia, veio a possibilidade”, conta Paulo André, que apresentou, como resultado desse processo, um texto poético que, num primeiro momento, não tinha nome.
“Esse texto não tinha nem título, eu não conseguia dar um título e achava que estava bom assim, ficava mais curioso para quem abrisse e fosse ler, porque ele tem o formato de um grande poema. Pensei que podia ficar interessante sem título”, diz.
O texto traz a história de um casal – interpretado por três duplas distintas de atores do Galpão, que se revezam ao longo da obra – diante da iminência de um fim, vivendo as últimas horas dos últimos dias do mundo como o conhecemos.
Paulo André entregou esse texto para algumas pessoas, entre elas o ator, diretor e dramaturgo Marcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, que dirigiu o Galpão nos espetáculos “Nós” (2016) e “Outros” (2018). “Ele leu e gostou muito, disse que gostaria de adaptar e dirigir esse texto um dia”, conta o ator.
A criação do projeto Dramaturgias abriu essa possibilidade. Abreu afirma que, quando foi chamado para trabalhar mais uma vez com o Galpão, criando para o Dramaturgias, propôs algo relacionado ao texto, que, afinal, ganhou o título de “Febre” no final do ano passado, quando Paulo André contraiu COVID-19 e, nas reuniões virtuais com o grupo, compartilhou sua situação.
ELIPSES
“Acho que o texto tem muito de um estado febril, com muitas elipses, muitas reiterações, uma sucessão e uma variação grande de imagens. Ele tem realmente essa latência da febre. Encontrar esse título nos ajudou muito na feitura do filme, porque nos orientou no sentido de produzir, na tela, esse estado febril, essa coisa meio delirante, meio onírica”, diz o ator.
Abreu, por sua vez, chama a atenção para a forma como o texto reverbera e reflete sobre questões urgentes, relativas ao tempo presente, de maneira poética. Ele conta que não queria fazer uma peça virtual ou algo do tipo, daí surgiu a ideia de um filme.
“A gente foi adaptando para transformar numa linguagem cinematográfica. É um texto aberto, com uma estrutura bem permeável e com uma dimensão poética muito evidente, então isso resultou num filme-fluxo, com muitas vias de acesso para o espectador, que é tocado pelo lado da sensibilidade.”
O diretor assinala que, apesar dessa característica, o curta “Febre” tem um enredo delineado. “A gente tem um casal, uma dupla em meio à iminência do fim das coisas, em um movimento de deslocamento. Essa dupla sai de casa, vai viver e olhar os últimos momentos de algo que parece estar no fim. Isso tem uma dimensão dramática, mas também tem humor e tem um senso crítico”, aponta.
LOCAÇÕES EM BH
Abreu veio a Belo Horizonte no início deste ano, quando, num prazo de nove dias, foram realizadas as gravações, em três locações distintas, que compõem um percurso dos personagens, numa espécie de fuga.
Essas locações foram pensadas segundo temporalidades distintas: o “tempo da fuga” aparece nas externas noturnas, em ruas do Centro de Belo Horizonte; o “tempo do sonho”, com imagens estranhas e desconexas, no Teatro Marília; e o “tempo da lembrança” se concretiza nas cenas gravadas em um sítio, onde se vivem as memórias de um passado feliz.
“O filme, na verdade, é o delírio de alguém, como se a pessoa tivesse muita febre. Quando estamos assim, deliramos”, diz Marcio Abreu, ao explicar que o curta mostra o que se passa na mente desse alguém: “Um dos delírios diz respeito à fuga, como se o mundo estivesse acabando e as pessoas fugissem para algum lugar. Ao mesmo tempo, é uma história de amor”, sublinha.
Paulo André observa que as filmagens foram realizadas num tempo muito curto, mas que isso não implicou nenhum tipo de prejuízo para a obra. “Foram nove dias para roteirizar, decupar, ensaiar e filmar, então trabalhamos com muita abertura para o improviso. O Marcio é um artista muito sensível, ele sabia que muita coisa ia acontecer na hora, então deixou esse espaço para o improviso. Foi corrido, mas foi muito prazeroso esse trabalho nas madrugadas pelas ruas de BH, filmando, inventando, imaginando o que poderia resultar”, conta.
ENGAJAMENTO
“O tempo era muito exíguo, mas havia grande engajamento de todas as pessoas envolvidas, dos atores à fotografia, da produção à assistência de direção e à trilha sonora”, comenta Abreu, aludindo a nomes como Luiz Felipe Fernandes, Gilma Oliveira, Alexandre Baxter e Flora Guerra, que compõem a equipe do filme, e à premência que guiou a realização de “Febre”. “O processo foi muito bonito e corajoso”, acrescenta.
O diretor destaca que a ideia de fim que atravessa o filme não deve ser encarada de forma objetiva ou redutora. Ela pode ser entendida como o fim de uma trajetória ou de um determinado modo de se verem as coisas.
“É um pouco mais amplo do que a ideia estrita do fim do mundo. Claro, tem a pandemia, tem guerra, tem extrema-direita se expandindo, então a gente tem um pouco essa percepção do planeta sendo destruído, mas não quis me debruçar muito nisso”, afirma.
“Prefiro ver de forma mais relativa: se a gente olha para as populações indígenas do Brasil, por exemplo, elas já viveram vários fins do mundo, o primeiro deles, talvez, com a chegada dos portugueses. Eu recuso um pouco a ideia generalizante de fim do mundo; ela é fruto de uma espécie de apropriação de discurso, de manipulação de entendimento da população.”
Paulo André conta que, em 2020, quando escreveu o texto, estava efetivamente sob o impacto de um cenário muito adverso. “É uma história de amor pós-pandêmica, onde o mundo que a gente conhece está acabando, pelo menos para aquelas pessoas ali, que sentem que esse mundo está deixando de existir, esgotou, e elas não sabem se algum outro mundo vai surgir depois, ou qual mundo será. Escrevi num momento muito sem perspectiva de tudo, de um porvir, de um trabalho, de um encontro com os amigos.”
Ele pondera que, a despeito do tom aparentemente pessimista, “Febre” não tem exatamente essa pegada, já que os personagens não estão passivamente esperando o mundo acabar: eles saem para a rua, são ativos, vão ao encontro deste fim de mundo. “É nesse deslocamento que se dá o texto, pelas passagens, pelos encontros, pelos acontecimentos”, ressalta.
“Escrevi num momento de falta de perspectiva, não só pela pandemia, mas pela situação do país neste momento, com esse desmonte de todas as áreas, principalmente a cultura, mas não sinto o texto como pessimista, apesar do mote. É um grande poema, uma história de amor entre pessoas que se deslocam”, acrescenta o ator.
VIRADA E RUPTURA
Ele diz que, particularmente, acredita que este momento seja de virada para a humanidade, de ruptura, e que isso pode trazer algum aprendizado para um novo tempo. Como o momento, em sua opinião, é de mudanças – seja pela pandemia, pela questão climática, pelos conflitos em geral –, há que se aproveitar para “dar um salto e sair desse buraco”.
“Ouço as pessoas falando sobre a vida voltar ao normal; eu não espero isso e não acho que seja possível. Parece papo retórico, mas realmente acredito nisso, que este mundo em que a gente vive está esgotado, não tem mais para onde ir. Quero que as coisas mudem, não quero voltar à normalidade de antes. Não sou o mesmo de 2020. Ainda bem. A gente tem que crescer um pouco, olhar para o outro com mais empatia. Não dá mais para viver neste mundo egoísta, com cada um se virando para salvar o seu; não cabe mais isso”, opina.
A construção do texto e do filme remonta à tradição do Grupo Galpão de convocar seus atores e suas atrizes a desafios em áreas para além da atuação. “Trabalhamos muito com o esquema do que chamamos de workshop, nos quais somos provocados a também escrever, dirigir, iluminar, fazer figurino etc. Temos muito estímulo e fazemos um pouco de tudo”, observa Paulo André, ao lembrar as motivações para a criação da escrita de “Febre”.
Ele já escreveu outros textos para o Grupo, como “Arande Gróvore" (2008), no projeto Cine Horto Pé na Rua, dirigido pela atriz Inês Peixoto, e “Outros” (2018), junto a Eduardo Moreira e Marcio Abreu, para quem esse novo trabalho conjunto reafirma um “encontro de vida e os vínculos que permanecem, que tomam outras formas e geram novas experiências”.
O diretor considera muito significativo conseguir realizar um filme em tão pouco tempo, num momento tão difícil, cheio de entraves e empecilhos. “Esse desmonte da cultura, das artes, com nós, artistas, sendo colocados no alvo… São vários elementos que dificultam qualquer movimento, então estar afinados, em sintonia, estabelecendo uma parceria de confiança, isso faz muita diferença. Vejo esse trabalho como uma consequência do encontro. Você vai criando amizades artísticas e de vida que vão gerando esses campos de atração e de cooperação que tornam tudo melhor”, afirma.
“FEBRE”
Filme do Grupo Galpão, com direção de Marcio Abreu, a partir de texto de Paulo André. 23min. Estreia nesta sexta-feira (4/3), às 20h, no canal do Galpão no YouTube, onde permanece em cartaz até 13/3