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Estado de Minas 50 ANOS DE HISTÓRIA/ESPECIAL

'Clube da Esquina' é fruto da amizade de jovens na BH dos anos 1960

Álbum duplo de Milton Nascimento e Lô Borges traduzia a inquietação e o lirismo de rapazes que gostavam de cinema, música e de tocar na noite


06/03/2022 04:00 - atualizado 11/03/2022 09:14

Foto mostra os músicos Milton Nascimento, Lô Borges e Ronaldo Bastos muito jovens
Milton Nascimento, Lô Borges e Ronaldo Bastos: jovens parceiros na arte e na vida (foto: Arquivo EM/D.A Press)

Há várias formas de se analisar a história do movimento que desembocou no disco “Clube da Esquina”, lançado em março de 1972. Para além da música em si, uma das maneiras mais oportunas de se desenvolver esse roteiro é sob o viés da amizade. Pelo menos é o que advogam os criadores, intérpretes, poetas e instrumentistas ouvidos pelo Estado de Minas.

No centro da narrativa está Milton Nascimento, ou apenas Bituca, como todos os amigos se referem ao cantor e compositor nascido no Rio de Janeiro e criado na mineira Três Pontas por pais adotivos. Foram os laços fraternais amarrados por Milton em suas travessias que pavimentaram os caminhos que fundaram o clube. “Quando alguém faz algo de que eu gosto, eu quero essa pessoa perto de mim, e de preferência trabalhando comigo. Sempre foi assim”, disse Milton em 2010, em entrevista por telefone.
Muita água rolou até o lançamento de “Clube da Esquina”. Retornemos, então, para a Belo Horizonte dos anos 1960. O cenário é cinematográfico: uma edificação gigantesca na esquina da Avenida Amazonas com Rua Curitiba, a um quarteirão da Praça Sete. O Edifício Levy abrigava uma população de 400 pessoas em seus 17 andares. Foi para uma pensão no quarto piso que, em 1963, mudou-se um jovem negro e tímido de 20 anos vindo do interior, Milton do Nascimento.

Recém-chegados de sua casa no bairro de Santa Tereza, acomodaram-se no 17º andar do Levy o jornalista Salomão Borges e a esposa, a professora Maricota, com a prole de 11 filhos. O encontro desses dois núcleos gerou o embrião do “Clube da Esquina”.


Milton tocava violão e cantava. A musicalidade peculiar e a extensão vocal do rapaz chamavam a atenção dos moradores do Levy. Ele começou a frequentar o apartamento da família Borges após se aproximar do filho mais velho do casal, o crooner Marilton. Logo formariam o grupo vocal Evolusamba, ao lado de Marcelo Ferrari e Wagner Tiso, amigo de infância de Bituca. Enquanto trabalhava como datilógrafo de dia, Milton foi se profissionalizando na noite belo-horizontina. Apresentava-se tocando contrabaixo com o Berimbau Trio, ao lado de Tiso e Paulinho Braga. No repertório, sambas-canções, bossa nova e standards do jazz.
 
Foto antiga traz Milton Nascimento, muito jovem, tocando baixo acústico ladeado por violonista, baterista e pianista
Milton Nascimento e seu baixo acústico nos anos 1960 (foto: Arquivo EM/D.A Press)
 

Wagner Tiso é mineiro de Três Pontas – cidade para onde Milton foi levado aos 2 anos por seus pais adotivos. Eles moravam na mesma rua e iniciaram as carreiras juntos: Milton com 14 anos, Wagner com 11, cantando nas noites com o grupo vocal Luar de Prata. Wagner se mudou para Alfenas (MG) para fazer o curso científico, com os pais e irmãos, e o amigo foi morar com eles. Lá, formaram o grupo W’s Boys, que batia ponto em bailes de cidadezinhas nas redondezas. Ambos partiram juntos, depois, para a capital Belo Horizonte, onde gravaram o compacto “Barulho de trem” e as carreiras musicais foram se desenhando.

No Levy, a convivência intensa com os Borges fez com que Milton do Nascimento se aproximasse do filho número 2, Márcio, aspirante a cineasta e amante das artes. “Bituca era nosso irmão. Não era irmão de criação, era mais irmão do que nós todos”, detalha Márcio Borges em entrevista ao EM. No sombrio 1964, Bituca e Márcio foram assistir ao clássico francês “Jules et Jim”, filme de François Truffaut, no Cine Tupi.

arte em forma de girassol mostra todos os integrantes e participantes do disco Clube da Esquina
(foto: Arte: Soraia Piva)


Embasbacada pelo teor da obra, uma ode ao amor e à amizade, a dupla emendou três sessões seguidas do filme, em um total de oito horas e uma parceria que duraria a vida inteira. O filme gerou um impulso criativo em Milton, que acabou respingando em Márcio. Os dois amigos foram para o “quarto dos homens”, no apê dos Borges, e compuseram juntos três canções de uma tacada só: “Paz do amor que vem (Novena)”, “Gira girou” e “Crença”. Milton iniciava ali sua brilhante carreira como compositor.

Três personagens correm alegremente em cena do filme Jules et Jim
Sob o impacto de "Jules et Jim", filme de François Truffaut, Milton Nascimento e Márcio Borges compuseram três canções de uma vez só (foto: Les Films Du Carrosse/reprodução)


Bituca prometeu ao amigo que só criaria músicas com ele, mas rompeu o compromisso ao conhecer o jovem Fernando Brant, mineiro de Caldas, jornalista e estudante de direito. A amizade de Brant com Milton foi instantânea e avassaladora, dando vida, em 1966, à canção “Travessia”, primeira letra de Brant e primeiro sucesso nacional de Milton Nascimento. Por meio de Bituca, Fernando e Márcio também tornaram-se bons camaradas. O trio fazia música, planos e mais amigos.

O músico belo-horizontino Nelson Angelo foi um dos parceiros que surgiram nessa caminhada. Conheceu o trio em meados dos anos 1960 na capital mineira e manteve-se muito próximo dele ao longo dos anos seguintes.  “Milton tem o dom de sempre formar amizades e aglutinar pessoas”, conta Nelson, que frequentava com Bituca o Edifício Maletta e os bailes noturnos conduzidos por Nivaldo Ornelas e Celinho Trompete.

Em 1956, o escritor Fernando Sabino, nascido em Belo Horizonte, lançou o romance “O encontro marcado”, em que narra a saga de um jovem escritor, com suas desventuras e conquistas juvenis, em uma atmosfera em que boêmia, literatura, cumplicidade, questões existenciais, dramas familiares, rupturas e reencontros regem a vida dele e de seus amigos mais próximos. Com traços autobiográficos, “O encontro marcado” revela detalhes que remetem à saga de Sabino ao lado de Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos, entre Beagá e Rio de Janeiro. A obra é um clássico da literatura brasileira e acabou por instigar Márcio Borges.

“Eu sentia que minha geração tinha que seguir aqueles passos de Sabino, Mendes Campos e Lara Resende, o amor pela cidade e a dedicação à arte, à literatura, à poesia, ao cinema e à amizade”, descreve o compositor. “Esses caras realmente existiram em Belo Horizonte, circularam por lá, e criaram uma mitologia urbana que influenciou muito eu e Bituca na nossa juventude. A gente quis ter esse elo de amizade que ultrapassasse o tempo e as fronteiras, como de fato conseguimos experimentar e provar que é possível. Atravessar uma vida inteira sendo amigos, baseados na honestidade, na lealdade, na franqueza, na afinidade de hábitos, nos sonhos e projetos comuns. E tamo aí, um mais velho do que o outro”.

Fernando Brant ouve Milton Nascimento cantar ''Travessia'', no Maracananzinho, durante o Festival Internacional da Canção, em 1967
Fernando Brant e Milton Nascimento, autores de ''Travessia'', no palco do FIC, em 1967 (foto: Museu Clube da Esquina/reprodução)
Em 1966, Milton meteu o pé na estrada e mudou-se para São Paulo para tentar dar um rumo à carreira. Após tempos difíceis, o artista ganhou visibilidade ao receber em 1966 o prêmio de melhor intérprete no Festival Nacional da Música Popular, da TV Excelsior, cantando “Cidade vazia”, de Baden Powell e Lula Freire. Ainda em 1966, outro acontecimento robusto: Elis Regina é a primeira artista de sucesso a gravar e lançar uma composição de Milton, “Canção do sal”.

Apadrinhado pelo cantor Agostinho dos Santos, Milton teve três músicas de sua autoria inscritas pelo cantor no Festival Internacional da Canção (FIC) em 1967 à sua revelia. As três foram classificadas: “Travessia”, “Maria minha fé” e “Morro velho”. “Travessia” tirou segundo lugar na competição e o Brasil ganhou o timbre desconcertante de Milton Nascimento. Nascia uma estrela.

Maria Bethânia, casaco branco, olha para a câmera, com as mãos em prece, e sorri
(foto: Jorge Bispo/divulgação)

'Que delícia poder falar sobre coisa boa, raríssimo ultimamente. Maravilhoso o disco, vivo, quente, o "Clube da Esquina" e seus idealizadores; e a voz do Milton, eterna, deslumbrante. Trabalho feito por tantos e extraordinários músicos e poetas. E a voz do Milton, uma das maiores riquezas do Brasil, ouro e madeira de lei, barroco e tribal. O Brasil tem que voltar a merecer esse luxo e essa glória. Viva o "Clube da Esquina". Viva a voz do Milton. Recebam os meus aplausos de pé. "Cais" é a música que mais me marcou'

Maria Bethânia, cantora


 
 
 
Capa do álbum 'Clube da Esquina' traz foto de garotos branco e negro sentados à beira da estrada
Os meninos Tonho e Cacau, fotografados por Cafi no interior do Rio de Janeiro, na icônica capa do LP duplo "Clube da Esquina'' (foto: Cafi/reprodução)


Faixa a faixa

1.TUDO QUE VOCÊ PODERIA SER
Lô Borges e Márcio Borges

2.CAIS
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

3.O TREM AZUL
Lô Borges e Ronaldo Bastos

4.SAÍDAS E BANDEIRAS No.1
Milton Nascimento e Fernando Brant

5.NUVEM CIGANA
Lô Borges e Ronaldo Bastos

6.CRAVO E CANELA
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

7.DOS CRUCES
Carmelo Larrea

8.UM GIRASSOL DA COR DO SEU CABELO
Lô Borges e Márcio Borges

9.SAN VICENTE
Milton Nascimento e Fernando Brant

10.ESTRELAS
Lô Borges e Márcio Borges

11.CLUBE DA ESQUINA No.2
Milton Nascimento, Lô e Márcio Borges

12.PAISAGEM DA JANELA
Lô Borges e Fernando Brant

13.ME DEIXA EM PAZ
Monsueto e Ayrton Amorim

14.OS POVOS
Milton Nascimento e Márcio Borges

15.SAÍDAS E BANDEIRAS Nº2
Milton Nascimento e Fernando Brant

16.UM GOSTO DE SOL
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

17.PELO AMOR DE DEUS
Milton Nascimento e Fernando Brant

18.LILIA
Milton Nascimento

19.TREM DE DOIDO
Lô Borges e Márcio Borges

20.NADA SERÁ COMO ANTES
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

21.AO QUE VAI NASCER
Milton Nascimento e Fernando Brant
 
Leia na segunda-feira (7/3): Como uma temporada de Milton e Lô em Niterói foi decisiva para a criação das músicas do disco “Clube da Esquina” 






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