Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Foi assim que Santa Tereza entrou para a história da MPB


Os anos que o casal Salomão e Maricota passou no Edifício Levy foram definitivos para a história da família Borges. Os encontros, amizades e aventuras vividos pelos filhos Marilton, Márcio e o pequeno Lô mudariam para sempre os rumos de suas vidas. Depois de muito semear no Centro de Belo Horizonte, em 1967 os Borges retornaram para a casa que tinham na Rua Divinópolis, no bairro de Santa Tereza. Naquele endereço, o Clube da Esquina daria os passos fundamentais rumo à eternidade.





Ali perto da casa dos Borges, o agora adolescente Lô se encontrava com os amigos para fazer um som na esquina da Rua Divinópolis com Rua Paraisópolis. Anos antes, entusiasmados com a sonoridade incandescente dos Beatles, Milton e Márcio levaram os irmãos do último, Lô e Yé, então com 12 e 11 anos, para assistir ao filme “Os reis do iê, iê, iê” (“A hard day’s night”, em inglês) no Cine Brasil.


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Os garotos gostaram tanto da película com o Fab Four que convidaram o amigo Beto Guedes para formar uma banda cover batizada The Beavers. Bituca delirou com a sagacidade dos moleques. “O grupo era muito bonito, muito forte, eu ficava espiando as coisas que eles faziam, como fã”, lembra Milton.

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Beto Guedes, filho do compositor Godofredo Guedes, era de Montes Claros e morava em um edifício na Rua Tupis, ali perto do Levy. Lô e Beto se cruzaram pelo Centro de BH e se tornaram amigos inseparáveis. Acabaram tendo aulas de harmonia com um certo Toninho Horta. “Lembro-me de dar uma aula de teoria para eles debaixo de um abacateiro”, revela Toninho, que residiu por um período no mesmo prédio dos Guedes e sempre via Beto e Lô, os “jovens roqueiros”, pelas ruas da cidade com seus violões.




 
Em 2002, dona Maricota e Salomão Borges com a família, na sala de sua casa musical em Santa Tereza (foto: Eduardo Rocha/RR/22/10/02)
 
Quando a família Borges retornou a Santa Tereza, Toninho passou a frequentar os encontros musicais na casa da Rua Divinópolis. Toninho era irmão de Paulinho Horta, músico da noite e amigo de Marilton. Foi por essas conexões que Toninho conheceu Bituca em Belo Horizonte. No primeiro encontro, os dois trocaram figurinhas musicais. “Tivemos certa simpatia um pelo outro de cara”, diz o instrumentista.

Bituca também começou a frequentar a casa da musical família Horta no alto do Colégio Batista. Em 1966, eles se tornaram parceiros em “Segue em paz”, melodia de Toninho com letra de Milton. O instrumentista recorda que Bituca sempre foi admirado por seu canto, enquanto ele era “compositor tímido que cantava baixinho”.

(foto: Arte: Soraia Piva)

No Festival Internacional da Canção (FIC) em que Bituca classificou três músicas, em 1967, Toninho Horta foi selecionado com duas: “Nem é carnaval” (com letra de Márcio Borges) e “Maria Madrugada”. “Todo mundo tinha classificado uma música, apenas eu, Bituca e Vinicius de Moraes tínhamos mais de uma. Fomos muito requisitados”, lembra o compositor.





Embalado pelo sucesso do festival, Milton havia se mudado para o Rio de Janeiro e lançou seu primeiro disco, “Travessia”, trazendo as parcerias com Márcio, Fernando Brant e um certo Ronaldo Bastos. Em meados de 1967, em troca de carta com Márcio, Bituca escreveu que conhecera um “grande cara” e “inspirado poeta”. Era Ronaldo, nascido em Niterói (RJ) e à época com 20 anos. 

Milton foi convidado pelo arranjador Eumir Deodato a gravar nos Estados Unidos. Em 1969, lançou o álbum “Courage”. De volta a Beagá vindo do Rio, como fazia tantas vezes, foi visitar os Borges. Na casa de Santa Tereza, encontrou o jovem Lô sozinho. O rapaz tinha 16 anos. Os dois foram a um bar e Bituca se assustou ao perceber que o menino havia crescido. “Eu pedi uma batida de limão e ele: ‘Outra pra mim’. Olhei pra ele com aquela cara de ‘não, senhor’, mas não teve jeito”, revela Milton. “Ele me contou que gostava muito das coisas que eu fazia e, na época do Levy, ficava sentado na escadaria, escondido, me ouvindo cantar”.

Algumas batidas de limão depois, Lô surpreendeu Bituca com uma reclamação. “Vocês não gostam de mim. Vocês vão para vários lugares e não me chamam, não me levam a sério”, bradou o adolescente. Milton arregalou os olhos e retrucou: “Lô, sabe quando eu descobri que você não era mais aquela criança? Agora, quando você pediu uma batida de limão”. Com os ponteiros acertados, Lô revelou ao amigo dos irmãos mais velhos que estava criando algumas harmonias no violão. Os dois retornaram à casa dos Borges.





“Ele me mostrou uma harmonia, eu peguei meu violão e comecei a improvisar. Quando a coisa me pega muito fundo, fecho os olhos e não vejo mais nada que tá acontecendo no mundo”, descreve Bituca. Quando ele voltou a si, já não estavam mais sozinhos em casa. Dona Maricota chorava ao ver a cena e segurava uma vela acesa, enquanto Márcio Borges rabiscava uma letra em um caderno. A luz havia acabado. Nasceu ali “Clube da Esquina”, primeira canção de Lô Borges, parceria com Milton e Márcio. “A partir desse dia, Lô começou a compor sem parar”, diz Milton.

Márcio conta que se intrometeu na criação dos dois e tratou logo de colocar os versos que se tornariam célebres: “Noite chegou outra vez/ De novo na esquina os homens estão…”. O poeta se inspirou no ponto entre as ruas Paraisópolis e Divinópolis onde o irmão de número 6 se encontrava com os amigos para tocar violão. De lá se via a Serra do Curral cercando Belo Horizonte.

A canção acabou batizando também o encontro musical daqueles amigos e de outros que viriam. “O nome ‘clube’ designava uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio-fio, onde os adolescentes da rua costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira”, detalha Márcio no livro de memórias “Os sonhos não envelhecem”. O letrista relata também que os versos ficaram um pouco “lunáticos e tristes” porque ele se sentia assim naqueles tempos.



(foto: Cadu Dias/divulgação)


Todo dia é dia de viver 

O disco “Milton Nascimento”, terceiro do artista, foi lançado em 1969 e dialogava muito com os primeiros trabalhos de Bituca. A grande virada estética veio em “Milton” (1970), álbum gravado com a banda de apoio Som Imaginário e uma sonoridade de acento roqueiro. Nesse trabalho, Milton lançou Lô Borges ao público ao registrar a faixa “Clube da Esquina” e outras duas composições do novato, “Para Lennon e McCartney” (com Márcio Borges e Fernando  Brant) e “Alunar” (com Márcio). “Tinha muita gente compondo em Belo Horizonte, mas as coisas que o Lô fazia me tocavam mais fundo”, observa Milton.

Quando Bituca resolveu prestar ainda mais atenção na música de Lô Borges, teve um insight: “Vou gravar um disco com esse menino”, pensou. Ele ainda tinha um último álbum para cumprir com a gravadora Odeon e deu uma cartada audaciosa: queria lançar o primeiro disco duplo do Brasil e ainda dividir os créditos com o prodígio de 18 anos, desconhecido nacionalmente. Ronaldo Bastos sugeriu um disco conceitual, com início, meio e fim, tal qual um certo “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”, lançado em 1967 pelos Beatles.

“Sempre tive certeza da genialidade do Lô, sempre. As coisas que ele faz, não existe artista em lugar nenhum do mundo que consegue algo parecido”, afirmou Milton, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas. “E ele continua criando músicas maravilhosas até hoje. Não teria ‘Clube da Esquina’ sem Lô Borges.”





A gravadora quis barrar a ideia por achá-la pouco vendável, mas Milton bateu o pé. Com o apoio do diretor de elenco da Odeon, Adail Lessa, conseguiu prosseguir com o projeto. “Falei que se eles não topassem, eu arrumava outra gravadora”, conta Milton. “Eu era desconhecido e superinexperiente, eles não conheciam minhas músicas, mas acabaram dando oportunidade a este estreante”, relembra Lô.

(foto: UBC/reprodução)


Com composições de Milton e Lô Borges e letras inspiradíssimas de Márcio Borges, Fernando Brant e Ronaldo Bastos, “Clube da Esquina” acabou não sendo o primeiro disco duplo do Brasil. “Fa-Tal Gal a todo vapor”, de Gal Costa, chegou antes às lojas.  Mas se tornou um divisor de águas na discografia brasileira ao lançar mão de ousadias artísticas e tecnológicas que dariam ao álbum o status de obra-prima.

“‘Clube da Esquina’ foi algo definitivo que aconteceu na minha vida. E, por sorte, o meu coração se deixou levar. Tudo continua com o mesmo frescor para mim”, diz Ronaldo Bastos, em entrevista ao EM. “É um som moderno, são canções atemporais e tenho pelas minhas canções o mesmo amor que tenho pelas dos meus outros companheiros de viagem. Essas músicas e esse som que nós criamos lá atrás continuam a surpreender antigas e novas gerações. Não tem nada mais gratificante. Para mim, ‘Clube da Esquina’ é uma lenda.”





Lô Borges tinha 20 anos quando “Clube da Esquina” chegou às lojas. Milton, 29. “A amizade e o amor entre essas pessoas regeram o disco. A amizade e a confiança são a base de tudo”, analisa Lô Borges. “Sou muito grato ao Milton pela confiança que ele teve em mim, um cara desconhecido e inexperiente, peitando a gravadora e tudo. Ele me assumiu do início ao fim.”


Leia na segunda-feira (7/3): Como uma temporada de Milton e Lô em Niterói foi decisiva para a criação das músicas do disco “Clube da Esquina”