Jornal Estado de Minas

FOTOGRAFIA

Livro de Ricardo Stuckert traz imagens e a história de 10 etnias indígenas


Ricardo Stuckert sobrevoava a mata amazônica fechada, no Acre, quando avistou um grupo de índios. Chovia muito e o helicóptero no qual embarcara com o indigenista José Meireles tentava retornar à cidade após abortar a viagem de entrega de mantimentos a uma comunidade de acesso restrito. Stuckert, por sorte, carregava duas lentes potentes, uma de 400mm e outra de 500mm. O sobrevoo foi rápido, mas ele teve tempo de focar o chão e ser surpreendido por um grupo de índios isolados que, segundo Meireles, nunca haviam feito contato. “Fiquei emocionado”, lembra o fotógrafo, mais conhecido por seus registros da cena política brasiliense.





O resultado é uma das imagens mais belas de “Povos originários – Guerreiros do tempo”, livro que Stuckert lançará em evento virtual ainda sem data e traz uma série de fotografias realizadas em 2017, principalmente.

A publicação reúne registros de10 etnias cujos territórios foram visitados pelo fotógrafo. Para cada uma delas, há o texto de um antropólogo escolhido pelas próprias lideranças indígenas para falar sobre a história de cada povo. “Não é um livro só de fotografias”, avisa Ricardo Stuckert. “As pessoas vão entender que é a história deles. Isso engrandeceu muito o projeto”, afirma o autor.
Autor ressalta que os povos indígenas mantêm ainda ''sã'' parte considerável das florestas brasileiras (foto: Ricardo Stuckert/reprodução)

Outro momento emocionante foi o reencontro com Penha Góes, índia fotografada no Xingu no final dos anos 1990, durante a produção de uma reportagem para a revista Veja. Stuckert decidiu reencontrá-la 17 anos depois para outro registro. Levou um ano para localizar Penha, hoje formada em enfermagem e de volta à aldeia para ajudar nos cuidados à comunidade.




TEMPO DIFERENCIADO

O processo de realização do livro, com visitas às aldeias, reforçou no fotógrafo uma percepção antiga: o tempo na floresta não é o tempo da cidade e, muitas vezes, essa diferença na maneira de encarar as urgências interfere no trabalho.

Stuckert desistira de fotografar o cacique Raoni, pois percebeu que ele não queria, não estava à vontade. No último dia da visita, o líder indígena o convidou para um banho de rio. Stuckert deixou o equipamento de lado e se preparou. Mas Raoni quis saber se ele não levaria a máquina. “Pensei: 'agora é a hora de fotografar, agora ele deixou'. E aprendi que o tempo não é nosso. É deles”, conta.
(foto: Ricardo Stuckert/reprodução)

A jovem Penha Góes no Xingu, nos anos 1990 (acima), e hoje, na aldeia natal, onde trabalha como enfermeira (foto: Ricardo Stuckert/reprodução)


O tempo é essencial, mas também é um ativo caro. “Não é fácil fazer um projeto desse no Brasil, não tive nenhum patrocínio, vendi carro, máquina”, explica o fotógrafo. “Sinto muito não poder ter ficado mais tempo nas aldeias. Ia numa quinta ou sexta para voltar na segunda. Nem dormia, porque era pouco tempo. Ao longo desse trabalho, fui me redescobrindo, entendendo que eu era outra pessoa.”





A experiência reforça a urgência das políticas de proteção às populações indígenas. Stuckert lembra que elas são responsáveis por manter sã uma parte das florestas brasileiras.

“A gente sai da realidade da cidade, chega no estado, anda mais cinco horas de barco e entra em outra realidade, com guardiões da floresta que estão preservando tudo aquilo que estamos destruindo. Todo mundo quer as terras deles, porque elas são boas, eles preservaram. E eles sabem que aquilo é importante para a sobrevivência deles. Essa coisa da demarcação no Brasil é muito séria”, diz.

Fazer ensaio sem o compromisso da pauta pré-determinada por um veículo de comunicação ajudou-o a construir uma linguagem particular. Munido de lentes de última geração, ele pôde explorar um leque enorme de possibilidades.





Em uma das imagens, a índia aparece submersa no mesmo plano em que está a paisagem ao redor do rio. “É uma lente especial, que possibilita tudo no mesmo plano”, explica Stuckert. “Como é um projeto autoral, fotografo com drone, com máquina subaquática, com lentes 800mm, 600mm. Porque quando a gente faz um trabalho muito autoral, tem a condição de colocar ali toda nossa técnica, nossa linguagem fotográfica.”
Crianças: comunhão total com a natureza (foto: Ricardo Stuckert/reprodução)


Stuckert decidiu não receber remuneração financeira com a venda da publicação. Os direitos autorais serão convertidos em livros a serem doados para escolas indígenas e escolas públicas. Serão distribuídos 200 exemplares.

A responsabilidade de focar um microcosmo da população indígena brasileira também pesou quando Stuckert decidiu investir nesse trabalho. “Acho importante sair da esfera política de Brasília e ver o que tem em torno. O Brasil tem mais de 10 milhões de habitantes e só 98 mil indígenas, é de parar e pensar no que foi feito ao longo dos anos”, comenta.





“Já fui a mais de 100 países, a gente acha que conhece o mundo, mas quando vai a uma aldeia dessas, vê que não conheceu nada. As pessoas falam que os indígenas são minoria, que negros são minoria. Não. A gente vive num país em que mais da metade da população é negra. Quando os portugueses chegaram, aqui tinha apenas indígenas”, diz Stuckert.

Preservar essas populações e as terras habitadas por elas se tornou uma questão de sobrevivência para o fotógrafo. “A pandemia está totalmente interligada com a natureza, o mundo está gritando, chorando. E quem está lá na ponta são os guardiões da floresta, os indígenas. É um Brasil que pouca gente conhece”, lamenta.
(foto: Tordesilhas/reprodução)

“POVOS ORIGINÁRIOS – GUERREIROS DO TEMPO”

•  De Ricardo Stuckert
•  Editora Tordesilhas
•  280 páginas
•  R$ 299