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Estado de Minas 50 ANOS DE HISTÓRIA/ESPECIAL

''Clube da Esquina'' nasceu ao som das ondas na paradisíaca Mar Azul

Na segunda parte da série sobre os 50 anos do disco de Milton Nascimento e Lô Borges, um mergulho no processo de criação das canções em uma praia de Niterói


07/03/2022 04:00 - atualizado 11/03/2022 06:39

Beto Guedes, Milton Nascimento e Lô Borges nadam na praia de Mar Azul, nos anos 1970
Beto Guedes, Milton Nascimento e Lô Borges "pegam jacaré" em Mar Azul (foto: Odeon/reprodução)

Muito da atmosfera libertária presente nas faixas de “Clube da Esquina” deve-se ao processo de gestação do projeto, uma história que desceu das montanhas de Minas Gerais, acomodou-se ao som das ondas do mar em terras fluminenses e merece um capítulo à parte neste capítulo da série de reportagens que o Estado de Minas publica para homenagear os 50 anos do disco.
 
Já morador do Rio de Janeiro, Milton Nascimento voltou a Belo Horizonte em 1971 disposto a convencer dona Maricota, matriarca dos Borges, a levar seu filho número seis para gravar um disco com ele na capital fluminense. Maricota relutou um pouco, lembrou que o filho iria servir no Exército, mas Bituca avisou que a oportunidade era muito boa.

“Meu pai era mais liberal, mas minha mãe disse que eu não ia morar no Rio em plena ditadura militar, com apenas 18 anos – e com o Bituca, que morava sozinho”, detalha Lô Borges, cujo nome é Salomão, herdado do pai.
Após convencer a matriarca, Lô impôs uma condição: disse a Bituca que não iria sozinho com ele para o Rio por achar que ficaria muito deslocado entre a turma “jazzística” que o acompanhava. Referia-se aos músicos Wagner Tiso, Luiz Alves e Robertinho Silva. “Meu negócio é Beatles”, teria dito Lô, que sugeriu levar o grande cúmplice Beto Guedes. Na casa do mineiro de Montes Claros, a mãe, dona Júlia, liberou o jovem, mas fez o adendo: “Cuidado com Beto na hora de atravessar a rua, ele é muito avoado”. Coisas de mãe.

Bituca, Lô e Beto moraram em diversos apartamentos no Rio de Janeiro, mas não se adaptaram. “Fomos expulsos de um prédio porque éramos cabeludos, porque bebíamos. E a gente nem fazia barulho nem nada”, diz Lô. Juntamente com um primo de Milton, Helson Romero, chamado de Jacaré, partiram então para a cidade de Niterói, no litoral fluminense, onde alugaram um casarão na isolada praia de Mar Azul, em Piratininga.

Enquanto davam início às composições das músicas que viriam a integrar o álbum “Clube da Esquina”, trocavam telefonemas com a turma de BH. “Diziam que havia um clima ótimo para criar”, recorda-se Márcio Borges. “Sabe que, algumas semanas atrás, Beto e Lô vieram aqui em casa e juntos relembramos muitas histórias de nossa temporada em Mar Azul. E uma coisa que a gente concluiu é que esse disco veio através do resultado direto da nossa imersão naquela casa, e uma vontade gigante de fazer música”, conta Milton ao EM.

Milton Nascimento e a mãe, Lilia, sentados num toco, na areia da Praia de Mar Azul
Milton Nascimento e a mãe, Lilia, em Mar Azul (foto: Reprodução/Instagram)


Em um quarto, estava Bituca com seu violão. Noutro, Lô Borges compunha. E Beto Guedes zanzava pelos cômodos dando seus pitacos. Lô diz que ter ido para Mar Azul foi um grande alívio após a temporada conturbada no Rio. “Tivemos vários meses para compor em um lugar paradisíaco. Lá não tinha vizinho, não tinha síndico, era só a gente por conta da criação”, recorda-se o compositor.

Autores de algumas das letras do disco, Márcio Borges e Fernando Brant moravam em BH, mas visitaram os amigos em Mar Azul. Eventualmente, a turma de Niterói também se deslocava para a capital mineira, onde apresentava as melodias para os letristas e dava as coordenadas. “Ronaldo disse que a ideia era fazer algo na linha do (disco) ‘Sgt. Pepper’s’, dos Beatles, em que uma música se conecta a outra, com começo, meio e fim”, revela Márcio. “Meio aos trancos e barrancos, enchemos o disco de referências beatlemaníacas e esse parentesco meio intencional foi mais que identificado.”

 cantor Flávio Venturini olha para o lado. Ao fundo, numa parede amarela, vê-se a sombra dele
(foto: Marcelo Mendonça/divulgação)

"O que ainda me impressiona ao ouvir o 'Clube da Esquina' é como ele foi visionário. Em um momento em que se fazia até passeata contra a guitarra elétrica, veio essa galera, abriu os olhos e abraçou tudo o que acontecia no mundo e no Brasil. A música que continua minha favorita é 'Tudo o que você podia ser"

Flávio Venturini, cantor e compositor



Nascido e criado em Niterói, Ronaldo Bastos ia com frequência ao refúgio de Mar Azul. “Ele passava o dia com os caras e acabou tendo um papel de preponderância na hora de escolher as canções e dividir quem iria fazer o quê, pois testemunhou o nascimento delas”, opina Márcio.

Ronaldo conta que o conceito do disco era muito aberto, mas o apanhado de composições o fazia enxergar certa unidade. Ronaldo, Fernando e Márcio assinam seis letras cada um em “Clube da Esquina”. Os versos de “Paisagem da janela”, “Saídas e bandeiras” e “San Vicente” couberam a Fernando Brant, morto em 2015.

A atmosfera era de farra e confraternização em Mar Azul. Havia banhos de mar diários, sempre pela manhã, e muita garrafa de cerveja vazia pelos cantos da casa. “Fui algumas vezes para lá com Robertinho Silva e Luiz Alves para ver como estava o clima, e estava muito favorável, muita amizade e criação. Acho que isso desaguou no disco”, opina o pianista e compositor Wagner Tiso.

O percussionista Robertinho Silva conta que já era casado e, por isso, não podia ficar 24 horas no casarão. “Eu pegava a barca para lá e voltava no mesmo dia. O pessoal mergulhava no mar e eu não podia, porque nunca aprendi a nadar”, conta ele.
 
Peça fundamental na engrenagem de “Clube da Esquina”, Toninho Horta esteve em Mar Azul perto do fim da temporada. Ele já era músico profissional e muito requisitado para participar de gravações de outros artistas, então quase não conseguia fugir do Rio. “Fui no último dia visitar e o repertório já estava todo escolhido. Eu não tive a oportunidade de participar desse tempo de incubação, senão seria um dos compositores do disco”, considera Toninho.

Com as composições prontas, a próxima parada foram os estúdios da gravadora Odeon, na avenida Rio Branco, centro do Rio de Janeiro. E, além de um time de músicos tarimbados, o disco teria uma participação muito especial (leia matéria ao lado).

Sentado e usando dreadlocks, Milton Nascimento é abraçado por Alaíde Costa e os dois sorriem para a câmera
(foto: Gualtier Sgarboza/divulgação/2008)

''Pra mim, ela é uma das maiores cantoras do mundo. Sempre tive o sonho de cantar com a Alaíde (Costa).Aquele dueto em 'Me deixa em paz' foi um dos grandes momentos não só do disco, mas da minha carreira''

Milton Nascimento, cantor e compositor


Alaíde Costa: a única mulher do "Clube da Esquina"

A única voz feminina em “Clube da Esquina” é a da cantora carioca Alaíde Costa, que divide com Milton os vocais de “Me deixa em paz”, canção de Monsueto Menezes e Ayrton Amorim. Juntamente com “Dos cruces”, de Carmelo Larrea, são as únicas das 21 faixas do álbum que não são de autoria de Milton, Lô e companhia.

Intérprete tarimbada, de timbre especial e repertório sofisticado, Alaíde participava de um programa na TV Tupi, “Almoço com as estrelas”, no mesmo dia em que Milton se apresentou. Os dois já se conheciam das noites paulistanas, quando frequentavam o João Sebastião Bar, onde Bituca dava canja – mas, ali, nos bastidores da Tupi, os dois intérpretes plantaram a semente da gravação que faria história em 1972.

Linda Batista havia gravado “Me deixa em paz” como um samba carnavalesco em 1952, mas Alaíde a cantava de um modo bem diferente da versão original, com o andamento lento que configurava praticamente uma nova canção. “Eu nunca fui do sambão”, observa ela, em entrevista por telefone. Milton ouviu, se encantou pela interpretação e convidou Lalá, apelido da cantora, para gravar a bela música com ele.

“O tempo passou, passou, e eu até achei que ele tinha esquecido do convite”, conta Alaíde, que vive em São Paulo e tem 86 anos. Foi então que, em 1971, ela recebeu uma ligação da gravadora Odeon pedindo que fosse ao estúdio.



Alaíde viajou para o Rio de Janeiro e, quando adentrou os estúdios da gravadora, a parte instrumental já estava pronta. Ela se emocionou com o arranjo. Coube a ela juntar-se a Milton e soltar a voz de afinação comovente.

“Eles eram meninos e eu não os conhecia (à exceção de Milton). Todos maravilhosos, faziam música que a gente não estava acostumada a ouvir”, diz ela sobre a trupe. “Para minha surpresa, essa faixa fez bastante sucesso”, orgulha-se a artista.

Segundo Alaíde, a gravação com Milton abriu as portas do mercado fonográfico para ela, rendendo um contrato com a mesma Odeon em que havia gravado pela primeira vez,15 anos antes.

Milton conta que era fã de Alaíde desde os tempos em que morava em Três Pontas. “Pra mim, ela é uma das maiores cantoras do mundo. Sempre tive o sonho de cantar com a Alaíde”, comenta. “Aquele dueto em ‘Me deixa em paz’ foi um dos grandes momentos não só do disco, mas da minha carreira”, revela Bituca, em entrevista ao Estado de Minas.
 
Leia na terça-feira (8/3): Toninho Horta, Robertinho Silva, Nelson Angelo e Wagner Tiso contam como ocorreram as gravações de “Clube da Esquina” nos estúdios da Odeon


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