Anunciada há pouco mais de um mês como uma das atrações do palco Sunset na edição deste ano do Rock in Rio, a banda Black Pantera, de Uberaba (MG), traz a público, na próxima sexta-feira (11/3), seu terceiro álbum, “Ascensão”, e no domingo faz um primeiro show de lançamento em sua cidade, em praça pública.
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Com efeito, a presença de pretos no cenário do rock brasileiro é historicamente escassa. Os dois momentos em que o gênero mais esteve em evidência no país – com a Jovem Guarda, nos anos 60, e com a geração dos anos 80 – revelaram o quanto ele é desproporcionalmente mais branco do que negro. É possível, naturalmente, pinçar outros grupos formados por pretos, mas a disparidade seguirá gritante.
Chaene observa que quando o Black Pantera surgiu, chamou mais a atenção pelo fato de ter dois pretos à frente do que propriamente por seu som.
“A imagem vende, claro, são dois caras pretos, com um baterista também miscigenado, fazendo som pesado. Isso causa um impacto. Mas tem o outro lado. Se fosse uma banda de brancos, fazendo o mesmo tipo de música, imagino que estaríamos num estágio mais avançado da carreira. Sendo pretos, nosso show tem que ser duas vezes melhor, o disco tem que ser melhor”, aponta.
“A imagem vende, claro, são dois caras pretos, com um baterista também miscigenado, fazendo som pesado. Isso causa um impacto. Mas tem o outro lado. Se fosse uma banda de brancos, fazendo o mesmo tipo de música, imagino que estaríamos num estágio mais avançado da carreira. Sendo pretos, nosso show tem que ser duas vezes melhor, o disco tem que ser melhor”, aponta.
Ele considera que o público do Black Pantera é formado por quem se sente representado pelo que dizem as letras – vale aqui mencionar os títulos dos dois singles já lançados que prenunciam o novo álbum, “Padrão é o caralho” e “Fogo nos racistas”, que não deixam margem de dúvida quanto ao discurso do grupo.
“Certamente, vai ter quem diga, com base num preconceito enraizado, que a banda é muito politizada, que só fala de racismo, mas é disso mesmo que a gente quer falar”, aponta.
“Certamente, vai ter quem diga, com base num preconceito enraizado, que a banda é muito politizada, que só fala de racismo, mas é disso mesmo que a gente quer falar”, aponta.
RECONHECIMENTO NO BRASIL
Com dois álbuns completos já lançados, em 2015 e em 2018, e vários singles de grande repercussão – como “I can’t breathe”, de 2020, composto após o assassinato do norte-americano George Floyd pela polícia em Minneapolis –, o grupo chegou a se apresentar na França, Estados Unidos e Colômbia antes de começar a efetivamente ter maior reconhecimento no Brasil. Ainda assim, segundo Chaene, os três integrantes seguem trabalhando em ofícios distintos para garantir o sustento.
“É uma luta diária nossa, a gente ainda não consegue viver de música. Tenho amigos que são modelos, pretos, lindos, e também não conseguem viver disso. O racismo estrutural elimina as chances de os pretos conquistarem seu lugar”, diz. “Mas nós somos muito teimosos”, completa.
Ele considera que a escassez de negros no cenário do rock brasileiro reflete de modo amplificado uma realidade que se observa no berço do gênero, os Estados Unidos, e que passa muito pela questão da apropriação cultural.
Ele considera que a escassez de negros no cenário do rock brasileiro reflete de modo amplificado uma realidade que se observa no berço do gênero, os Estados Unidos, e que passa muito pela questão da apropriação cultural.
“Essa coisa da representatividade realmente é complicada, e não deveria ser, porque o rock tem origem no blues, começa com os escravos nos Estados Unidos. Ninguém fala muito de Sister Rosetta, uma pioneira, grande rainha do rock, uma inspiração para nós, mas todo mundo sabe quem é Elvis Presley, que basicamente bebeu da música negra. O branco vem, faz a mesma coisa que os negros já vinham fazendo, e é a partir daí que essa coisa passa a existir. Sempre houve esse processo de apropriação e o racismo que ele revela”, afirma.
APROPRIAÇÃO CULTURAL
Vocalista da banda Pelos, de Belo Horizonte, que está há mais de 20 anos na estrada, Robert Frank também identifica no histórico de apropriação cultural uma das causas da pouca representatividade dos pretos no cenário do rock.
“Sempre considerei o rock como o melhor exemplo do que é apropriação cultural, isso de você tomar uma coisa para si e tentar apagar o que havia antes. Por mais que se tenha a idolatria aos grandes bluesmen ou a Jimi Hendrix, o padrão contemporâneo do rock é basicamente de gente branca. A jovem guarda trazia essa essência da apropriação norte-americana”, diz.
Também ator e artista visual, Robert acredita que o rock, no Brasil, não chega a ser propriamente um ambiente racista – ele apenas reflete o racismo estrutural do país –, mas guarda algo de reacionário.
“Se você pega hoje em dia o público roqueiro, tem uma grande parcela que é ligada aos movimentos de extrema-direita. A questão do racismo estrutural só veio a ser discutida de forma mais ampla e incisiva recentemente, e aí é que a gente vê com mais nitidez o que acontece nessas esferas”, aponta.
A Pelos está em fase de mixagem de um novo disco, ainda sem nome, com previsão de lançamento para agosto. Robert destaca, a propósito, que é “o trabalho mais preto” da banda, no que diz respeito às temáticas e também à sonoridade, já que incorpora elementos do soul e da black music, de forma geral.
“A gente discutiu muito esse disco antes de começar a criar. Todas as músicas vieram dentro desse processo de construção, que vem desde o ano passado. Com mais de 20 anos de atividade, começamos a pensar o lugar em que a gente está, o que a gente, enquanto uma banda majoritariamente preta, de rock, quer dizer para a geral.”
O grupo obteve aprovação de um projeto na Lei Municipal de Incentivo à Cultura para a celebração de suas duas décadas de carreira. Estão previstos para ocorrer ao longo deste ano quatro shows com formatos distintos: um compilando músicas de todas as fases do grupo; outro só com versões de artistas que influenciaram a banda; um terceiro de lançamento do novo disco; e um quarto com um formato mais reduzido, voltado para plateias e espaços menores.
“Nossos planos passam por pegar a estrada mesmo, tocar muito, espalhar a proposta do novo disco e o que ele levanta em termos de discussão”, afirma Robert.
“Nossos planos passam por pegar a estrada mesmo, tocar muito, espalhar a proposta do novo disco e o que ele levanta em termos de discussão”, afirma Robert.
SONHO DE INFÂNCIA
O anúncio da participação da Black Pantera no Rock in Rio veio somente no início de fevereiro, mas Chaene diz que o convite foi feito em 2020, e que o grupo não divulgou antes em razão de um contrato de confidencialidade.
Ele destaca que a banda sempre trabalhou muito para chegar aonde está hoje, mas admite que o contato feito pela produção do festival os pegou de surpresa. “A gente ficou meio pasmo. No começo, foi um choque, eu ficava me perguntando todo dia se era isso mesmo, porque é um sonho de infância”, ressalta.
O grupo vai abrir a programação, no primeiro dia do Rock in Rio, em 2 de setembro, recebendo como convidada a banda Devotos – já que a proposta do palco Sunset é promover encontros. “A gente tinha um monte de opções para escolher, mas chegamos a um consenso, porque o Devotos é uma referência, e também porque pensamos que vai ser muito interessante ter duas bandas pretas dividindo o palco na abertura do festival”, comenta.
Vocalista do Devotos, Canibal não hesita em apontar o racismo estrutural e os processos de apropriação cultural como causas da pouca representatividade dos negros não só no rock, mas em diversas outras esferas da vida social.
“Dentro do rock e da cultura negra, de forma geral, sempre houve apropriação cultural e, ao mesmo tempo, a exclusão de quem criou. É como no caso de Jesus Cristo, que era negro, mas a mídia o traz para a sociedade como um branco de olhos azuis. No rock, você tem um criador, que é o Chuck Berry, mas o Rei do Rock é o Elvis Presley. No Brasil não muda nada. A apropriação é grande demais e não oferece nada em troca”, diz.
ESTRUTURA RACISTA
Ele observa que há muitas bandas de rock com integrantes pretos espalhadas Brasil afora, mas que elas estão alijadas por uma estrutura racista da sociedade.
“O país está lotado de bandas de rock com pessoas negras, inclusive como frontmen; não só na bateria, na percussão. Tem muito negro comandando banda, tocando guitarra. Por isso é muito importante bandas como Devotos ou Black Pantera, que usam a música como um modo de intervenção social, estarem num festival como o Rock in Rio; é positivo para a sociedade, para ela se ver. É positivo para a periferia, para o subúrbio, também para abrir espaço para essas bandas que estão aí, espalhadas por todos os cantos”, ressalta.
“O país está lotado de bandas de rock com pessoas negras, inclusive como frontmen; não só na bateria, na percussão. Tem muito negro comandando banda, tocando guitarra. Por isso é muito importante bandas como Devotos ou Black Pantera, que usam a música como um modo de intervenção social, estarem num festival como o Rock in Rio; é positivo para a sociedade, para ela se ver. É positivo para a periferia, para o subúrbio, também para abrir espaço para essas bandas que estão aí, espalhadas por todos os cantos”, ressalta.
Tocar no Rock in Rio é, conforme aponta, um sonho de infância e uma grande oportunidade. “Criamos a banda para isso, para falar com todo mundo, não com a intenção de mudar ninguém, mas para abrir as mentes. As reações podem ser as mais diversas, mas acho que ninguém vai ficar indiferente. Chico Science falava de diversão com responsabilidade; é isso que vamos fazer no Rock in Rio, nós e o Black Pantera”, afirma.
Canibal diz que ficou muito entusiasmado com o convite dos mineiros para dividir o palco Sunset. Ele considera que, por se tratar de duas bandas com integrantes pretos que transitam por gêneros afins – o punk, o hardcore, o metal –, a identificação já existe naturalmente.
“Eles têm um talento muito grande, ainda vão ser muito falados, vão rodar o mundo cada vez mais. Conseguiram fazer muita coisa em pouco tempo. O Black Pantera é uma banda necessária, precisamos de quem fale o que eles falam, porque a alienação está muito grande nas periferias, dentro da sociedade como um todo. Se a gente não conversa sobre racismo, vamos ser engolidos”, salienta.
Em sua opinião, a negação do racismo que veio se avolumando ao longo dos últimos anos, com a onda conservadora, é um tipo de desespero.
“Nós, negros, estamos nos articulando bastante, graças às mídias de que dispomos hoje. Temos Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, Emicida, Criolo, Clemente. Na política, Dani Portela foi a vereadora mais votada do Recife. E na eleição anterior, foi uma branca, pastora. Essas mudanças assustam aqueles que querem manter o status quo da branquitude”, diz.
“Nós, negros, estamos nos articulando bastante, graças às mídias de que dispomos hoje. Temos Djamila Ribeiro, Sílvio Almeida, Emicida, Criolo, Clemente. Na política, Dani Portela foi a vereadora mais votada do Recife. E na eleição anterior, foi uma branca, pastora. Essas mudanças assustam aqueles que querem manter o status quo da branquitude”, diz.