Para além da criatividade de Milton Nascimento e Lô Borges, muito do êxito do disco “Clube da Esquina” se deve ao artesanato da sonoridade única que começou a ser gestada poucos anos antes, quando o grupo Som Imaginário foi arregimentado para acompanhar Milton nos palcos. Foi ali pelo fim da década de 1960, no Rio de Janeiro, que os músicos Wagner Tiso, Robertinho Silva, Luiz Alves, Tavito, Zé Rodrix e Laudir de Oliveira foram recrutados pelo produtor Zé Minssen para participar do show que ficou conhecido como “Milton Nascimento, ah, e o Som Imaginário”.
“Fizemos a estreia no Teatro Opinião, no Rio, e foi um sucesso impressionante”, recorda o contrabaixista Luiz Alves, em entrevista ao Estado de Minas para a série de reportagens “Nada foi como antes – Clube da Esquina 50 anos”. “Tinha fila na porta e toda a cultura da época ficou de queixo caído”.
“O Milton precisava de um grupo que desse peso à carreira dele”, conta o pianista e tecladista Wagner Tiso, espécie de diretor musical do Som Imaginário. Tiso, Robertinho Silva e Luiz Alves já tocavam juntos em trio no fim dos anos 1960, com influências do jazz e da bossa nova, e participaram da fundação do grupo. Logo, juntaram-se a eles Tavito e Zé Rodrix.
Depois dos primeiros shows, Tiso sentiu que, para ser “mais moderno”, faltava uma guitarra solo. Foi aí que entrou o carioca Frederico Mendonça de Oliveira, o Fredera, trazendo verve ainda mais roqueira à trupe. “Ele deu um novo impacto no grupo”, observa Tiso. “Antes disso, eu tinha até um pouco de preconceito com o rock”, assume Robertinho.
O Som Imaginário teve diversas formações e contou ainda com Toninho Horta, Nelson Angelo, Naná Vasconcellos, Novelli, Jamil Joanes, Nivaldo Ornelas e Paulinho Braga.
Com pegada jazzística e virtuosa, que mesclava psicodelia e rock progressivo ao som de Bituca, o grupo gravou o antológico “Milton”, lançado em 1970, quarto álbum de estúdio do artista e considerado um dos mais arrojados de sua discografia. Foi um caminho natural, então, que em 1971 os instrumentistas do Som Imaginário participassem das gravações do “Clube da Esquina”. Wagner Tiso, Toninho Horta, Luiz Alves, Tavito, Robertinho Silva e Nelson Angelo emprestaram seus talentos para que as composições da trupe ganhassem vida.
As gravações de “Clube da Esquina” representam muitas estreias para os que delas participaram: a primeira vez de Lô e Beto Guedes no estúdio, o primeiro solo de Toninho Horta, o primeiro arranjo de Wagner Tiso para orquestra, a primeira aventura de Nelson Angelo no piano.
“Eu era o mais novo de toda a turma, um estreante, e o pessoal me recebeu com o maior carinho e solidariedade. Eles não me deixaram ficar inseguro, foram muito generosos”, diz Lô Borges sobre a relação com os músicos, que, apesar de também jovens, eram mais tarimbados do que ele e Beto Guedes.
Wagner Tiso já havia percorrido longa estrada musical, mas viveu nova experiência em “Clube da Esquina”. Ele e Lô foram apresentar para Eumir Deodato a canção “Nuvem cigana” para que o pianista criasse o arranjo para orquestra. Tiso tocou, Lô cantou e Deodato avisou que estava indo para os Estados Unidos dali a dois dias. “Deixa que o Wagner faz isso, ele sabe escrever para orquestra”, disse Deodato.
Lô comunicou o ocorrido a Bituca e ele acatou a sugestão. “Embora já tivesse feito arranjos para Johnny Alf, Agostinho dos Santos e Maysa, foi a primeira vez que escrevi para orquestra. Depois disso, embalei e fiz orquestração para todo o pessoal de Minas”, detalha Tiso, que marca presença em praticamente todas as faixas de “Clube da Esquina” tocando órgão, piano elétrico e acústico, além de fazer backing vocal em “Estrelas”.
“Foi o Wagner Tiso quem me fez entrar na música mineira”, conta o baterista carioca Robertinho Silva, que, então com 30 anos, tocou em
12 faixas de “Clube da Esquina”. “Eu já era um craque”, brinca ele.
Robertinho inventou de levar um tambor de folia de reis e tocá-lo em “San Vicente”, para surpresa de Milton, que aprovou a intervenção. Essa canção, aliás, parceria de Milton com Fernando Brant, é a preferida de Robertinho no disco. “A música mineira me deu uma liberdade de criação que eu não tinha em nenhuma outra música”, nota ele. “Quando vi a liberdade que eu tinha, fui apresentando o que sabia. Tocar com os mineiros foi um prêmio na minha vida.”
Milton diz que, muitas vezes, os músicos escolhidos para determinadas funções eram os que estavam no estúdio no momento. “Pode ver que tem música ali com Toninho Horta e o Lô na percussão, o Beto Guedes no baixo. Era um clima de muita criação o tempo todo”, comenta.
O carioca Luiz Alves emprestou a sonoridade marcante de seu contrabaixo, acústico e elétrico, para 10 faixas do “Clube da Esquina”, além de tocar percussão em outras quatro.
“Foi nesse disco que conheci Lô e Beto Guedes. Fiquei ainda mais conhecido depois desse acontecimento que foi o ‘Clube da Esquina’”, diz ele. Participação que ele guarda com orgulho na memória é o baixo elétrico que conduziu em “Clube da Esquina nº2”, ainda em versão instrumental. “O disco é moderno até hoje”, analisa.
Wagner Tiso conta que as composições chegaram praticamente prontas ao estúdio. A partir dos arranjos de base, ele repassou as coordenadas para o Som Imaginário e todos trabalharam juntos. “Os arranjos desse disco foram coletivos”, diz.
Destaque também para os arranjos de orquestra criados pelo pianista Eumir Deodato em “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Clube da Esquina nº2” e “Um gosto de sol”, sob regência do maestro Paulo Moura, morto em 2010.
“Foi uma conspiração divina que aconteceu e juntou essa galera. De repente, Milton estava com um time muito especial de músicos para gravar o álbum duplo”, observa Toninho Horta, que, com mais experiência, atuou como arranjador nas gravações de base de várias canções, ajudando a formatar introduções, repetições e solos.
Toninho Horta está presente em 15 das 21 faixas de “Clube da Esquina”, tocando guitarra, violão, baixo e percussão, e também participando dos backing vocals.
'Esse álbum é fascinante, um clássico na história da música brasileira. Quanto mais o tempo passa, mais prazeroso é explorar as ideias que lá estão. Percebe-se que os grandes músicos que participaram o fizeram de várias formas, tocando instrumentos diferentes de uma faixa pra outra, induzindo ao ouvinte uma sensação de 'estar à vontade e livre', ao mesmo tempo em que há um comprometimento. É um álbum em que uma canção dialoga ou tem afinidade com a seguinte, por isso não há como escolher a preferida'
João Bosco, cantor e compositor
O solo inesquecível e “O trem azul”
A contribuição mais marcante de Toninho Horta é o solo inesquecível em “O trem azul”, de Lô e Ronaldo Bastos, feito a pedido de Wagner Tiso. Na primeira tentativa, o solo não saiu conforme o esperado. “Nunca tinha me considerado um solista, não tinha estudo aprofundado de escalas e módulos que o pessoal domina para ser bom improvisador”, explica.
“Wagner falou que na segunda eu tinha que acertar, porque gravávamos tudo em dois canais, e eu fiz esse solo histórico”, diz o guitarrista, às gargalhadas. Com poucas notas, Toninho deu ao solo a roupagem inusitada reproduzida por Tom Jobim quando o “maestro soberano” regravou a canção em 1994, com letra em inglês. “O solo acaba deixando o autor em destaque, por ocupar o lugar do cantor na melodia”, diz Toninho.
“Essa reunião de talentos que o Bituca comandou, com a tendência ao jazz, ao rock e ao clássico do Som Imaginário, e a admiração de Lô Borges e Beto Guedes pelos Beatles deram um cunho popular ao projeto”, acredita Wagner Tiso. A preferida do pianista? Justamente “O trem azul”. “É uma música que Tom Jobim e Elis Regina gravaram e o mundo todo canta: simples, bonita e comunicativa”.
A liberdade criativa é citada também pelo compositor e guitarrista Nelson Angelo. “O estúdio é que era a casa de onde surgiam as ideias de arranjos e a participação dos músicos”, comenta. Além da guitarra, ele tocou percussão em algumas faixas. E piano, pela primeira vez na vida, em “Pelo amor de Deus”, de Milton e Fernando Brant.
“Nem aprendiz de feiticeiro eu era. Todo mundo tocou tudo”, diz. Criador talentoso, Nelson teve sua parceria com Ronaldo Bastos, “Quatro luas”, gravada por Bituca em seu terceiro LP, “Milton Nascimento”, de 1969. O amigo cantaria outras de suas canções ao longo da carreira, como “Fazenda” e “Canoa, canoa” (escrita com Brant).
Nelson Angelo defende que a criação do “Clube da Esquina” também foi impulsionada pelas limitações tecnológicas da época. Com apenas dois canais de gravação disponíveis no estúdio, eram exigidas organização e criatividade musical fora do comum.
“Coisas inusitadas que aconteciam não eram possíveis de tirar”, diz Nelson. “Todos sabiam muito bem o que queriam e desempenharam suas funções sem questionamento.” Ele diz que, durante as gravações, ninguém agia como “dono” daquilo que estava ocorrendo. “As pessoas mergulharam de corpo e alma nesse disco e todos ficaram extremamente satisfeitos de ter participado. Tudo era muito novo, fervendo e cheio de energia. Isso gerava um fogo bonito.”
O outro novato do grupo, Beto Guedes acompanhou todo o processo de elaboração do álbum. O multi-instrumentista de Montes Claros tocou baixo, guitarra, percussão, violão de 12 cordas e ainda dividiu com Milton Nascimento os vocais de “Nada será como antes” e “Saídas e bandeiras nº 1” e “2”, além de backing vocals em outras faixas. Também participaram das gravações o baterista Rubinho e o trombonista Raul de Souza.
Ronaldo Bastos diz que, com tantos instrumentistas excepcionais no estúdio, a parte musical dispensava os pitacos dele. “Nem mesmo na hora de colocar as vozes – coisa que eu, por ser compositor de letras, prezo muito na hora de produzir – precisei fazer grandes observações”, comenta o letrista de “Cais”. (GS)
“Saídas e bandeiras nº1”
Milton Nascimento e Fernando Brant
O que vocês diriam dessa coisa que não dá mais pé?
O que vocês fariam pra sair dessa maré?
O que era sonho vira terra
Quem vai ser o primeiro a me responder?
>> Leia amanhã: A contribuição de Ronaldo Bastos e Márcio Borges nas letras do disco e a lembrança de Fernando Brant