Na capa do disco, uma cena rural: um garoto preto e outro branco simbolizam a amizade de Milton e Lô. Enquanto um deles ri, o outro tem o olhar desconfiado. De um barranco de terra, agachados, encaram a câmera do fotógrafo Cafi sem saber que em breve eles é que serão mirados por uma multidão de anônimos. Ao colocar o LP na vitrola, surgem canções forjadas no encontro de jovens audaciosos nascidos nos anos 1940 e 1950 que, juntos, iluminaram os caminhos da música de Minas Gerais nas décadas seguintes.
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“Acho que foi por isso que o Bituca centralizou em mim a tarefa de tentar fazer convergir os pensamentos todos numa coisa só. Minhas intervenções foram no sentido de achar uma unidade poética das canções, pensando também na sequência delas e na musicalidade”, conta em entrevista ao Estado de Minas para o especial “Nada foi como antes”, que homenageia os 50 anos do disco.
E que coesão poética seria essa? Muitas das canções de “Clube da Esquina” trazem temas existencialistas típicos de uma juventude reflexiva, expressos em imagens, sensações e metáforas que esbarram em certa melancolia, apreensão e solidão, mas também em sonhos e fantasias. É impossível não notar a reincidência do termo “estrada”, que aparece em pelo menos cinco faixas, mas cuja ideia central é exposta em diversas outras composições. São estradas, caminhos, passagens, encontros e viagens em construções líricas que evocam o desejo de movimento, mudança, fuga.
A narrativa de percurso e transformação também aparece na recorrência da palavra “vento” e suas derivações, presentes em seis composições. Outra observação que salta aos ouvidos é a importância dada à figura do sonhador, como simbologia para escapar e buscar o inatingível. Afinal, com o que sonham os criadores do “Clube da Esquina”? Letras de música, tal qual outras formas de expressão artística, são subjetivas. Elas podem deslizar da caneta do poeta com um significado diferente daquele apreendido pelo ouvinte. E é aí que está a graça.
A capa do disco nos leva para o ambiente rural, mas a poesia presente no disco é essencialmente urbana. Fala-se muito da cidade. A música, por sua vez, pode até evocar certa ruralidade, reverberada em toadas interioranas, mas o som de “Clube da Esquina” é moderno, requintado, pop e dissonante.
Autor dos versos de “Tudo o que você podia ser”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Os povos” e “Trem de doido”, Márcio Borges acredita que exista uma aura de mistério no fato de o disco ter conseguido tocar tão profundamente na sensibilidade e no acervo afetivo de uma legião de admiradores.
“Vejo centenas de interpretações dessas canções a todo momento nas redes – artistas jovens, anônimos, uma profusão de talentos que se multiplica. Por que será que essas músicas criaram uma morada tão grande dentro do coração dos brasileiros, de norte a sul do país?”, pergunta ele.
“Vejo centenas de interpretações dessas canções a todo momento nas redes – artistas jovens, anônimos, uma profusão de talentos que se multiplica. Por que será que essas músicas criaram uma morada tão grande dentro do coração dos brasileiros, de norte a sul do país?”, pergunta ele.
Uma ausência expressiva sentida nas comemorações do cinquentenário do disco é a do letrista Fernando Brant. Morto em 2015, aos 68 anos, o compositor foi parceiro de Bituca em seu primeiro sucesso, “Travessia”, e escreveu também obras icônicas como “Para Lennon e McCartney” (com Lô e Márcio) e “Ponta de areia”, “Canção da América”, “Nos bailes da vida” e “Maria, Maria” (todas com Milton), para citar as mais conhecidas.
Em “Clube da Esquina”, Brant teve contribuição decisiva, assinando versos inesquecíveis, como os de “San Vicente”, “Paisagem da janela”, “Pelo amor de Deus” e “Saídas e bandeiras nº2”. “Fernando Brant é um fenômeno, sem o qual acho que nada disso teria acontecido”, acredita o compositor e instrumentista Nelson Angelo.
“Nunca houve um amigo que pranteei tanto quanto o Fernando Brant. Não me lembro de ter chorado tanto, tão intensamente e tantas vezes, nem na morte dos meus pais”, emociona-se Márcio Borges, em entrevista ao Estado de Minas. “Nenhuma outra grande perda na minha vida me deixou tão inconsolável por tanto tempo. Depois, fui me adaptando à ausência dele, mas até hoje eu não posso falar muito, entende?”.
Os integrantes do Clube lembram-se com carinho também do belo-horizontino Tavito, morto em 2019. Coautor das icônicas “Casa no campo” (com Zé Rodrix) e “Rua Ramalhete” (com Ney Azambuja), o compositor mineiro, craque do violão e da guitarra, foi integrante da banda Som Imaginário e emprestou seu talento para diversas faixas do “Clube da Esquina”, como a marcante guitarra de 12 cordas que adorna “Tudo o que você podia ser”.
TUDO O QUE ELES PODIAM SER
A sonoridade singular e intuitiva de “Clube da Esquina” desperta análises sedutoras. Lô Borges defende que o talento dos instrumentistas convidados, bem como a liberdade criativa que eles encontraram no estúdio, deu vazão à explosão de experimentos musicais bem-sucedidos.
“Era uma oficina de criação livre. Cada um fazia o que queria nas músicas. Milton era o cara da história, capitaneando tudo, e deu total liberdade para cada um criar da maneira que queria. O disco foi feito todo ao vivo, sem ensaio, em apenas dois canais. A sonoridade é impressionante. Parece que foi gravado nos dias de hoje, mas a gente começou na idade da pedra”, nota o compositor, em entrevista ao Estado de Minas.
“Era uma oficina de criação livre. Cada um fazia o que queria nas músicas. Milton era o cara da história, capitaneando tudo, e deu total liberdade para cada um criar da maneira que queria. O disco foi feito todo ao vivo, sem ensaio, em apenas dois canais. A sonoridade é impressionante. Parece que foi gravado nos dias de hoje, mas a gente começou na idade da pedra”, nota o compositor, em entrevista ao Estado de Minas.
Para além do talento e da liberdade, a intimidade musical dos instrumentistas certamente contribuiu para esse resultado. Toninho Horta, responsável por diversos arranjos de base do disco, sugere uma análise que remete ao sincretismo musical em “Clube da Esquina”. Lô Borges e Beto Guedes trazem o rock dos Beatles, mas enquanto o primeiro bebeu da bossa nova com o irmão Marilton Borges, o segundo era filho de um chorão, Godofredo Guedes, e esses elementos também adentraram o caldeirão.
Wagner Tiso tem formação musical erudita, mas seu piano pendia também para o pop e o rock progressivo. Milton, na visão de Toninho Horta, traz os cantos de trabalho, que remetem “ao sol quente na cabeça nos cafezais sem fim”, além dos cânticos de igreja e da música religiosa das procissões. Já Toninho herdou a pegada das big bands do jazz norte-americano e da sonoridade de músicos como Stan Getz e Wes Montgomery.
Toninho Horta atribui ao disco “Clube da Esquina” a apresentação ao mundo da cumplicidade musical forjada em Minas Gerais. “Aqui, a gente tem muitas montanhas, né? A música dos compositores mineiros é caracterizada por um sobe e desce de intervalos distantes e notas longas que vão lá no pico das montanhas. Temos essa riqueza natural de ser melodistas em potencial, fazer coisas muito audaciosas em termos de intervalos melódicos, além da harmonia totalmente inusitada – criada em casa, porque a gente é meio desconfiado, meio quieto, meio religioso”, divaga o músico.
O autor do solo de guitarra de “O trem azul” acredita que, depois da bossa nova, o Clube da Esquina tenha sido o grande movimento musical do Brasil.
“A Tropicália trouxe a atitude, a vestimenta, letras legais, arranjos exóticos do Rogério Duprat, mas musicalmente o Clube da Esquina é reconhecido no mundo inteiro como o movimento que ultrapassou as montanhas de Minas Gerais e do país”, compara Toninho Horta.
“A Tropicália trouxe a atitude, a vestimenta, letras legais, arranjos exóticos do Rogério Duprat, mas musicalmente o Clube da Esquina é reconhecido no mundo inteiro como o movimento que ultrapassou as montanhas de Minas Gerais e do país”, compara Toninho Horta.
De certa forma, “Clube da Esquina” dialoga com a bossa nova em termos de requinte e sofisticação harmônica, mas também bebe da doutrina tropicalista. Enquanto o movimento baiano propôs romper padrões de bom gosto preestabelecidos, o Clube também abusou da mistura e da fusão, só que de maneira seletiva.
Mentor do tropicalismo, ao lado dos conterrâneos Gilberto Gil e Tom Zé, Caetano Veloso escreveu no prefácio de “Os sonhos não envelhecem”, livro de Márcio Borges, que o Clube da Esquina “trazia o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado) de uma síntese possível”. E mais: a sonoridade dos mineiros “aprofundou questões que foram sugeridas pelas descobertas anteriores, cuja validade foi confirmada pelo tempo”.
Mentor do tropicalismo, ao lado dos conterrâneos Gilberto Gil e Tom Zé, Caetano Veloso escreveu no prefácio de “Os sonhos não envelhecem”, livro de Márcio Borges, que o Clube da Esquina “trazia o que só Minas pode trazer: os frutos de um paciente amadurecimento de impulsos culturais do povo brasileiro, o esboço (ainda que muito bem-acabado) de uma síntese possível”. E mais: a sonoridade dos mineiros “aprofundou questões que foram sugeridas pelas descobertas anteriores, cuja validade foi confirmada pelo tempo”.
Só que o Clube da Esquina nunca se propôs como um movimento, mas é frequentemente percebido assim. O encontro dos mineiros e fluminenses foi mais intuitivo do que organizado, mas apresentou notáveis inovações estéticas e gerou um disco-manifesto – mesmo que “Clube da Esquina” não seja caracterizado dessa forma por seus artífices. Um movimento discreto, digamos, à moda de Minas Gerais.
Leia amanhã (10/3): “Clube da Esquina” foi lançado em problemático show de estreia, mas tudo mudou quando um mestre do jazz ouviu Bituca cantar. Nana Caymmi e Duca Leal tiveram papel fundamental na criação das canções “Clube da Esquina nº2” e “Um girassol da cor do seu cabelo”