Buddy é um menino de 9 anos que leva a melhor vida que poderia imaginar. Brinca na rua com os vizinhos e pula pela fileira de casas com seu escudo, feito de tampa da lata de lixo, como um gladiador. Adora seus avós, que lhe explicam muito da vida. Vê os pais como astros de cinema e está apaixonado por sua colega na escola.
Mas há problemas. O pai só vai para casa nos fins de semana – mesmo que tente disfarçar, as discussões com a mãe estão se tornando maiores. O avô tem uma tosse constante. E por que protestantes e católicos brigam tanto, impedindo-o de ir para a rua? O pior é que Catherine, a menina que ama, é católica. Por que, como protestante, não pode ficar com ela?
CONFLITO
“Belfast”, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (10/3), é como um conto de fadas em que o ator e diretor Kenneth Branagh, de 61 anos, traduz suas memórias da infância. Indicado a sete Oscars, incluindo melhor filme, direção e roteiro, o longa-metragem é ambientado em 1969, quando explosões de violência sectária na Irlanda do Norte anunciaram o conflito que se estenderia pelos 30 anos seguintes – e tem consequências até hoje.Em linhas gerais, protestantes queriam manter os laços com a Grã-Bretanha e católicos eram a favor da independência ou da integração com a República da Irlanda. Tal situação cria o grande conflito do filme: os pais devem deixar Belfast para poderem criar os dois filhos em segurança na Inglaterra?.
Mesmo vivendo em uma área predominantemente protestante com boa convivência com as famílias católicas, a família adia, sempre que possível, a decisão. E também outra, mais urgente: devem apoiar os protestantes?. Naquele momento, não tomar partido é o mesmo que tomar partido.
Sob o ponto de vista do menino Buddy (o adorável estreante Jude Hill) e deixando que o conturbado momento seja o pano de fundo, Branagh se afasta dos fatos em si. Seu olhar, muitos vão dizer, é ingênuo, diferente daquele de Alfonso Cuarón quando revisitou a própria infância em “Roma” (2018). Ao não questionar a própria memória, propositalmente ou não, Branagh conseguiu criar uma narrativa universal, que dialoga facilmente com distintas plateias 50 anos depois do ocorrido.
Ainda que sejam dois filmes muito distintos, a comparação de “Belfast” com “Roma” é inevitável não só pela temática, como pelo formato. Branagh também pintou suas lembranças de preto e branco.
O filme tem início em cor, com a longa panorâmica da cidade de Belfast nos dias atuais ao som de Van Morrison (as canções do cantor e compositor, natural da cidade, permeiam toda a narrativa; uma delas, “Down to joy”, está indicada ao Oscar).
A câmera vai chegando ao chão e a cor deixa a tela, passeando, em preto e branco, pela rua de um bairro da classe trabalhadora da capital da Irlanda do Norte. Estamos no verão de 1969, tudo ali parece ocorrer como um musical. O idílio termina em quebra-quebra.
O olhar de Buddy nos conduz para aquele mundo. Ouvimos as conversas por meio de trechos e sussurros dos adultos, em corredores estreitos e portas entreabertas. O menino tenta entender qual é o grande problema entre protestantes e católicos.
Em última análise, a prima alguns anos mais velha lhe explica que a primeira coisa a ser feita é perguntar o nome da pessoa. Dependendo do nome, ela é uma coisa ou outra. Esperto, Buddy faz um teste e deixa claro para a prima que a teoria é a maior furada.
As interpretações enchem a tela, e não foi surpresa alguma quando Judi Dench e Ciarán Hinds foram indicados ao Oscar como coadjuvantes. Sem esforço, os dois apresentam química em cena – assim como na relação com o pequeno Jude Hall – que só intensifica na íntima sequência amorosa quando o avô faz uma serenata ao pé do ouvido da avó.
Caitriona Balfe, popularíssima por causa da série “Outlander”, tem aqui seu melhor papel dramático até então. Sua personagem, na visão de Buddy, evoca a mulher de sonho, ainda que o verniz elegante não consiga esconder o ressentimento pela ausência do marido e pelas contas que chegam sem parar.
Porém, entre as discussões, sobra tempo para que o casal, ainda apaixonado, dance como numa sequência no cinema – e Branagh filma “Belfast” para ser visto na tela grande.
ÓCULOS
A sala de projeção, por sinal, é onde a família de Buddy escapa da convulsão política. Tudo o que é exibido nas sessões é colorido. Há uma cena lindamente filmada em que as cores do filme a que os personagens assistem aparecem somente no reflexo dos óculos da personagem de Judi Dench.Brincando com as cores – e, principalmente, com a ausência delas –, Branagh faz uma viagem nostálgica agridoce, que mostra como a tela do cinema nos permite sonhar.
“BELFAST”
(Reino Unido, 2021, 98min, de Kenneth Branagh, com Jude Hill, Caitriona Balfe, Jamie Dornan, Judi Dench e Ciarán Hinds). Estreia nesta quinta-feira (10/3). Diamond 2: 16h50, 19h15 e 21h40. Pátio 2: 15h25, 17h50 e 20h15. Ponteio 2: 15h, 17h05, 19h10 e 21h15. UNA Belas Artes 1:14h, 16h10, 18h20 e 20h30.