No dia 12 de março de 1972, o Diário da Tarde, jornal dos Diários Associados em Belo Horizonte, anunciou: “Milton Nascimento lança oficialmente outro mineiro talentoso, Lô Borges, no álbum ‘Clube da Esquina’. Estão dizendo que o disco de Milton é um novo marco na história da nossa música”. Foi um dos registros mais favoráveis ao disco à época do lançamento. A verdade é que “Clube da Esquina”, que agora completa 50 anos, não nasceu clássico. Pelo contrário, algumas críticas iniciais foram bem ácidas.
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Duca Leal é a musa da canção mais romântica do disco "Clube da Esquina"Coesão poética e liberdade de criação são a alma do 'Clube da Esquina'"Clube da Esquina": sonho vira realidade nos estúdios da Odeon'Clube da Esquina' atraiu olhos e ouvidos do mundo para Milton Nascimento 'Não há ninguém como Milton Nascimento', diz Herbie Hancock, lenda do jazzBituca: mestre da música e da arte do encontroGuia interativo reúne endereços de cafeterias em Belo Horizonte“Li que Bituca tinha voz de taquara rachada, Lô era um adolescente insignificante que não sabia o que estava fazendo dentro daquele disco, meus versos entravam feito pedras rolando pelos ouvidos... Imagina a gente vendo essas críticas depois de todo o trabalho? Foi um horror, uma decepção”, rememora o letrista em entrevista ao Estado de Minas, que publica hoje a quinta parte da série de reportagens dedicada aos 50 anos do álbum.
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As críticas negativas, segundo Márcio, acabaram decretando o fracasso do show de lançamento. Pelo menos no primeiro momento. Ele conta que gravadora e investidores não quiseram bancar teatro de grande porte para acomodar o concerto, e o resultado foi o pequenino Fonte da Saudade, no Rio de Janeiro, com cerca de 100 lugares, e orçamento baixíssimo.
“Ninguém nem sabia daquele teatro escondido”, diz ele. Para completar o cenário, crises pessoais de Bituca, alguns músicos estressados e pirações gerais geraram o anticlímax. Com menos de um mês, os shows foram suspensos.
“Bituca, Robertinho e Tavito se curaram, eu e Ronaldo também. Voltamos pro mesmo teatrinho, porque não tinha outro. O show era esplendoroso. Hoje, seria um palco milionário, mas ali estava todo mundo começando. Milton, Beto, Lô, Tavito, Luiz Alves, Robertinho Silva, Wagner Tiso, Toninho Horta, era gente talentosa demais pra um teatro de 100 pessoas. Tinha dia com mais gente no palco que na plateia. A gente raramente 'enchia'”, detalha Márcio.
Foi um começo tenebroso para “Clube da Esquina”. Mas aí veio o acaso. O grupo norte-americano de jazz fusion Weather Report fazia temporada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e os músicos queriam saber o que estava rolando nas noites cariocas. Alguém deu o toque. “Tá tendo um show maravilhoso com um tal de Milton Nascimento, que está estraçalhando, e quase ninguém sabe”, conta Márcio.
Eram noites de aflição para Milton e banda. Haveria público? Eis que um belo dia o contrarregra avisa a Bituca: “Hoje você tem que caprichar, porque tá assim de gringo na plateia”. Pela coxia, eles viram os músicos do Weather Report, entre eles o afamado saxofonista Wayne Shorter, que havia tocado com o lendário Miles Davis. Nervos à flor da pele não impediram que Milton e companhia entregassem uma apresentação belíssima. Ao final, Wayne Shorter foi ao camarim se apresentar e cumprimentá-los.
Nos Estados Unidos, Shorter já ouvira sobre Milton Nascimento. Uma amiga recomendou que fosse a uma loja de discos e colocasse o álbum do brasileiro para tocar.
“Quando fui ao Brasil e assisti ao ‘Clube da Esquina’, eu estava à frente dos outros músicos do Weather Report, pois já tinha sido introduzido ao som do Milton”, conta Shorter em entrevista por videochamada ao Estado de Minas.
Grande estrela, Wayne Shorter seguia sendo entrevistado sobre a temporada carioca do Weather Report. E não perdeu tempo: avisou que havia um show genial rolando. Assim, o saxofonista ajudou a consolidar a reputação e o sucesso dos mineiros. O americano convidou Milton para dividir um disco com ele, o que ocorreu dois anos depois.
Márcio diz que os ventos começaram a mudar a partir dali, e mesmo a turma que havia falado mal do disco tentou se retratar. Os shows passaram a ter fila e, finalmente, mais gente fora do que dentro do teatrinho. A demanda foi tamanha que as apresentações foram transferidas para o estádio de vôlei do Botafogo, onde cabiam 5 mil pessoas. Depois, o concerto ancorou no Maracanãzinho. “Até hoje a gente vive dessa fama. Nossa história é uma epopeia”, vibra Márcio.
“Realmente, foi um começo muito difícil, a crítica da época bateu muito no disco”, concorda Milton, em entrevista ao EM. “Quando a gente fez o disco, ninguém estava pensando nessa coisa de ser reverenciado e tal. Mas fico muito feliz que tudo tenha acontecido dessa forma e que a mensagem tenha chegado nas pessoas como a gente sonhava.”
Você ainda pensa e é melhor do que nada
Das canções mais executadas de Milton Nascimento nos últimos 10 anos, segundo o Escritório Central de Arrecadação (Ecad), duas estão no disco de 1972: “Clube da Esquina nº 2”, em segundo lugar, e “Nada será como antes”, em oitavo. Entre as mais regravadas da obra de Bituca, “Cais” aparece em terceiro lugar – é a primeira do letrista Ronaldo Bastos, cuja obra se diversificou e transcendeu o Clube da Esquina. Entre as 10 mais tocadas de Lô Borges, cinco pertencem ao álbum duplo: “Paisagem da janela”, “Clube da Esquina nº 2”, “O trem azul”, “Um girassol da cor do seu cabelo” e “Tudo o que você podia ser”.
Certamente, “Tudo o que você podia ser”, de Lô e Márcio, é umas das canções mais emblemáticas do projeto. Em 2021, ela ganhou os holofotes novamente ao ser executada durante desfile da Louis Vuitton, nos Estados Unidos, em que os astros do hip-hop Kanye West e Pharrell Williams se deliciam com a versão gravada pelo Quarteto em Cy.
Quando o vídeo viralizou, o filho de Lô ligou para o pai, quase chorando: “Meus ídolos vibraram com sua música”. Márcio Borges conta que Kanye já havia pedido autorização para usar um sample da canção, mas não chegou a lançar. “Esses caras são formadores de opinião. Então, fiquei muito satisfeito. E a música voltou a fazer muito sucesso popular”, diz o letrista.
Mas “Tudo o que você podia ser” não é uma canção sobre a leveza. Ela surgiu nos anos sombrios da ditadura militar e seus versos fazem menção ao herói nacional mexicano Emiliano Zapata.
“Eu era muito influenciado pelo cinema e totalmente apaixonado pela versão hollywoodiana do Zapata, interpretado por Marlon Brando em ‘Viva Zapata!’, de Elia Kazan”, detalha Márcio.
“Assisti ao filme dezenas de vezes e resolvi citar essa coisa braba de uma geração que estava desistindo de lutar e de seus sonhos, se entregando ao neoliberalismo e deixando todos os ideais socialistas para trás”, conta o letrista.
À sua maneira, Márcio Borges fez uma canção de protesto, imprimindo em “Clube da Esquina” o viés politizado. Mas o protesto de Márcio é sutil, não tão explícito quanto em outras canções do gênero. “‘Tudo o que você podia ser’ é protesto romântico, cinematográfico, algo mais cerebral, uma referência ao mito revolucionário e ao herói hollywoodiano”, diz o autor. “Sei um segredo/ Você tem medo/ Só pensa agora em voltar/ Não fala mais na bota e do anel de Zapata/ Tudo que você devia ser/ Sem medo...”
Leia nesta sexta-feira (11/3): O mutirão criativo que Milton Nascimento mobilizou, múltiplo como as pétalas de um girassol, formado por talentos brasileiros e internacionais.