Mesmo que a amizade seja uma forma de amor, canções propriamente românticas não são dominantes na temática do “Clube da Esquina”. A exceção é “Um girassol da cor do seu cabelo”, de Lô e Márcio Borges. “Ela se eternizou como a minha principal música romântica. A gente nunca foi de fazer canções de amor derramadas. Tenho essa e outras poucas”, conta o letrista Márcio Borges ao Estado de Minas, na quinta parte da série de reportagens dedicada aos 50 anos do álbum.
“Um girassol da cor do seu cabelo” tem a sua musa. Com 66 anos, ela vive em um sítio em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Duca Leal conheceu Márcio Borges aos 15 anos. Eles se casaram em 1971, viveram mais de uma década juntos e tiveram dois filhos.
“Ele compôs o ‘Girassol’ quando a gente tinha acabado de se casar. Só participei como inspiração. Quando cantou para mim, achei linda demais. Ele disse: ‘É pra você’”, revela Duca ao EM.
“Eu não era loura, mas na noite em que a gente se conheceu, logo após o Brasil ganhar a Copa de 1970, ele pegou a mecha do meu cabelo, botou contra a luz e disse: ‘É da cor de um girassol’”, diz.
Já o vestido que se eternizou no verso “a Terra azul da cor de seu vestido” era real. “Adolescente rebelde, queria me casar em casa vestida de cowgirl, mas nossas famílias horrorizaram. Acabamos nos casando na Igreja da Pampulha, sem véu nem grinalda, mas com um vestido lindo azul-clarinho”, lembra.
“As cenas são bastante reais”, conta Márcio. Ele havia recebido a melodia de Lô para letrar como uma das tarefas para o álbum. Passou a semana em Santa Tereza e depois foi viajar com a companheira. A única divergência nas versões do ex-casal é que enquanto Márcio diz que fez a letra quando namorava Duca, ela garante que já estavam casados. Apenas um detalhe.
Ambos concordam: estavam indo para Nova Era, para a casa de tios dela. Durante a viagem, a melodia não saía da cabeça de Márcio. E os versos foram surgindo.
“A letra funciona como cinema-olho, fui falando das coisas que estava percebendo: o vestido azul jeans desbotado, o campo de girassóis pelo qual passamos na viagem. Fiz uma canção de amor pra ela e me derramei nesses versos. Era o protótipo do otimismo, né? ‘Se eu morrer…’ Oras, claro que eu vou morrer. ‘Quando eu morrer’ seria o certo (risos). Coisa da juventude. Hoje, aos 75 anos, penso diferente”, observa.
Apelidada de Indiazinha, Maria do Carmo Leal, a Duca, morou com Márcio nos fundos da casa dos Borges. Depois se mudou com ele para o Rio de Janeiro. Acompanhou as criações do então companheiro para o “Clube da Esquina”, assistiu às gravações na Odeon. “Eu saía do colégio e ia pra lá. Não tinha participação ativa, mas ficava curtindo o som. Conversava pouco com os meninos, pois estavam todos muito envolvidos”, comenta.
Duca foi com Márcio para o casarão da Praia de Mar Azul, em Niterói, visitar Lô, Milton Nascimento e Beto Guedes durante a elaboração do disco. “Me sentia muito bem com Bituca. Era muito calado, mas eu tinha uma ligação com ele. Como era muito nova em relação aos meninos – nove anos a menos que o Marcinho –, ficava 'voando' nas conversas sobre política, filosofia, sociologia. Eles não interagiam tanto comigo, era uma coisa meio ‘a mulher do Marcinho’”.
Duca e Márcio se separaram em 1979, reataram e permaneceram juntos até 1984. Ela se aposentou como bibliotecária e massoterapeuta, teve mais um casal de filhos e é avó de cinco netos.
Em abril, Duca lança “Histórias de outras esquinas”, livro sobre seu envolvimento com o Clube. “Eu e Márcio não somos tão próximos, mas trocamos mensagens e temos notícias um do outro por meio de nossos filhos. Tenho muito carinho por ele, além de admiração e respeito por sua obra. Ele escreve muito lindo, né?”, comenta.
Em 1980, ela reuniu sete dos 11 filhos de Maricota e Salomão e produziu o disco “Os Borges”. Ali surgiu a compositora Duca, autora de “Outro cais”, parceria com Marilton, o primogênito. “Era um poema que eu tinha feito pro Marcinho havia anos. Sempre gostei de escrever, depois fui me retraindo.” Elis Regina ouviu, gostou e gravou “Outro cais” em “Os Borges”. “Ela já tinha gravado 'Cais' e quis essa também. Hoje, tenho mais noção do quanto isso é importante”, comenta Duca.
A outra canção dela é “Pros meninos”, parceria com Nico Borges e participação de Milton Nascimento. “Meu filho me disse uma vez: ‘Mamãe, você começou do alto, Bituca e Elis gravaram músicas suas, não tem como crescer mais como compositora’”, diverte-se.
Márcio se casou de novo e mora em Visconde de Mauá (RJ) há duas décadas. “Duca era à frente de seu tempo, andava no meio da rapaziada. Isso não era muito comum, ainda mais em BH, capital do estado mais tradicionalista e conservador que pode existir no Brasil’, comenta ele, que se considera uma pessoa rural. “A reclusão sempre foi o meu forte, então me adaptei bem a estes tempos de isolamento.”
De tudo se faz canção, comprovou Nana
“Porque se chamava moço/ Também se chamava estrada/ Viagem de ventania…”. Os versos da canção “Clube da Esquina nº 2”, escritos por Márcio Borges, estão entre os preferidos do irmão Lô. Porém, no disco “Clube da Esquina”, a parceria de Lô e Milton Nascimento era tema instrumental, sem letra. Os autores não queriam preencher a melodia, pois acreditavam que ela não precisava disso. Muitos anos depois do disco de 1972, Márcio foi intimado a escrever a letra.
Rio de Janeiro, 1979. A cantora carioca Nana Caymmi encontra Márcio em um bar no Baixo Leblon e avisa que está finalizando o novo LP. “Marcinho, você bem que podia fazer uma letra para 'Clube da Esquina nº 2', esse instrumental maravilhoso, pois tô a fim de gravar”, disse ela ao amigo.
O mineiro avisou que Fernando Brant já havia tentado, mas Bituca e Lô o fizeram desistir. Nana insistiu: “Faz para mim, na hora de gravar eu chamo os caras e mostro”. Márcio aceitou a incumbência e escreveu à revelia dos autores.
“Pressionei o Márcio. Foi só eu dar uma apertada e ele me deu a letra”, conta Nana Caymmi, aos risos, em entrevista por telefone ao Estado de Minas. “A pressão que eu fiz foi ótima, tenho certeza de que o Marcinho já queria fazer. Eu o rodeei, pois acho que era a única pessoa que poderia criar essa letra, pela ligação dele com o Milton e por ser irmão do Lô.”
Nana diz que nunca perguntou a Bituca o que achou dessa aventura, mas acredita que o amigo jamais teria coragem de confrontá-la. “Marcinho falou: ‘Ah, eles vão ficar meio assim’. E eu: ‘Ah, vamos gravar e depois a gente deixa eles gritarem’”, recorda a determinada filha de Dorival Caymmi.
“Clube da Esquina nº 2” foi cantada pela primeira vez com letra em 1979, no LP “Nana Caymmi”. “Achei os versos lindos, lindos, e fui embora gravar, já estava para fechar o disco. Era doida pela música, a melodia era um escândalo, sabia que vinha coisa boa de um poeta como o Márcio. Para mim, estava uma beleza. Não sou chegada a gravar merda, não”, dispara. “O arranjo ficou lindo. Às vezes, fico ouvindo ela aqui e babando.”
Quando Bituca e Lô fizeram sua primeira parceria, “Clube da Esquina” – gravada por Milton em seu disco de 1970 –, Márcio se intrometeu e criou os versos célebres: “Noite chegou outra vez/ De novo na esquina os homens estão…”. “Na número 2, eles disseram que a música já se expressava por si mesma, que eles a queriam instrumental, tanto que a gravaram assim”, conta Márcio.
Depois do chamado de Nana, ele se esforçou para criar uma letra “irrecusável”, pois seria feita sem o consentimento dos autores. “Na primeira, eu tinha falado de uma rua suburbana, dos meninos da esquina. Na segunda, queria falar da maturidade, dos moços se transformando em homens, e os homens partindo para outras esquinas, embarcando na realização de seus sonhos”, explica Márcio.
Bituca só registrou a composição com letra em 1993, no disco “Angelus”. Lô foi mais rápido. Poucos meses após a gravação de Nana, ainda em 1979, ele cantou “Clube da Esquina nº 2” com a irmã, Solange, em “A Via Láctea”, LP produzido por Milton.
“A letra é uma obra-prima do Márcio. A frase ‘e sonhos não envelhecem’ virou história. E foi o Márcio quem inventou”, elogia Lô.
“Acho que caprichei legal mesmo”, orgulha-se Márcio. “A Nana se emocionou muito quando mostrei pra ela. Bituca e Lô chegaram, ouviram e entenderam que se tratava de um momento histórico pra nós. Estávamos consagrando aquela canção, que ficou mais clássica do que a primeira 'Clube da Esquina'. Bituca, teimoso como ele só, foi gravá-la só no 'Angelus'”, diverte-se o letrista mineiro.
"Em 1972, eu tinha 8 anos de idade e comecei a trabalhar em uma loja de discos em Catolé do Rocha (PB). O que mais me chamou a atenção, primeiramente, foi a capa, que não tinha artistas, e sim uma criança branca e outra negra, amigos, né? Os meninos da capa deviam ter mais ou menos minha idade. Minha música preferida é 'San Vicente', por trazer algo de América Latina que de certo modo já vicejava em mim. A sonoridade me chama a atenção também. Canções em que não apenas as letras e melodias são importantes, mas também os timbres, os arranjos, a liberdade dos músicos poderem se expressar com veemência. E também o fato de ser um coletivo é muito interessante e pedagógico para quem vem depois, juntar artistas que se identificam, se admiram, não precisando estar amarrados por uma banda"
Chico César, cantor e compositor
Leia nesta sexta-feira (11/3): O mutirão criativo que Milton Nascimento mobilizou, múltiplo como as pétalas de um girassol, formado por talentos brasileiros e internacionais.