Eles estão entre os maiores ícones vivos do jazz fusion, integraram o lendário quinteto que acompanhava Miles Davis nos anos 1960 e se declaram admiradores fervorosos de Milton Nascimento – além de amigos dele, claro, como não poderia deixar de ser em se tratando de Bituca. Estamos falando dos norte-americanos Wayne Shorter e Herbie Hancock, que esbarraram em Bituca no começo de sua trajetória artística e nunca mais se desgrudaram dele.
série especial “Nada foi como antes - 50 anos do Clube da Esquina”.
As criações de Milton, que vai completar 80 anos em outubro de 2022, arrebataram músicos de todo o mundo. É um dos artistas brasileiros mais internacionais de todos os tempos. Lançado há 50 anos, o disco “Clube da Esquina” ajudou a consolidar esse lugar.
“A música de Milton Nascimento tem a bravura da pessoa que vai sozinha para o meio da floresta caçar um leão e o leva de volta à vila. Essa sonoridade flui por nossas veias e nos torna mais humanos”, compara o saxofonista Wayne Shorter, que dividiu com o brasileiro o álbum “Native dancer” (1975). De sua casa, na Califórnia, ele conversou por chamada de vídeo com o Estado de Minas, na sétima parte da ''A voz de Milton não é Frank Sinatra, não é Nat King Cole, é um som completamente diferente. Um som que o chama de volta à natureza''
Wayne Shorter, saxofonista
Wayne Shorter diz que a música de Milton é diferente daquela ouvida mundo afora. Destaca a rítmica de Bituca e o “sotaque diferente que ressoa como as batidas do coração”.
O americano convidou Bituca para gravar um disco com ele depois de tê-lo visto apresentar as canções de “Clube da Esquina” no Rio de Janeiro, em 1972, quando veio ao Brasil tocar com seu aclamado grupo de jazz fusion Weather Report.
Bituca topou. Três anos depois, voou para a Califórnia para dar forma a “Native dancer”, com cinco canções dele. “Esse brasileiro merecia ser recebido e tratado como o grande artista que ele é”, afirma Shorter, que compôs apenas três faixas do álbum.
“Ponta de Areia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, abre o disco com o falsete de Bituca em diálogo magistral com o saxofone de Shorter e o piano de Herbie Hancock. Há também “Tarde”, “Milagre dos peixes” e “From the lonely afternoons”.
“E tem aquela música que Milton fez para a mãe adotiva, ‘Lília’, muito interessante e sem letra. Um jeito muito imaginativo de cantar sobre alguém”, observa Shorter, referindo-se ao tema lançado no álbum “Clube da Esquina”.
As sessões de gravação, regadas a cachaça brasileira, duraram 10 noites e contaram com participação dos brasileiros Wagner Tiso, Robertinho Silva (egressos do Clube) e Airto Moreira, além do pianista Herbie Hancock.
TRÊS PERGUNTAS PARA
Wayne Shorter, saxofonista
Você colaborou diversas vezes com Milton Nascimento. O que chama sua atenção na música dele?
A voz de Milton não é Frank Sinatra, não é Nat King Cole, é um som completamente diferente. Um som que o chama de volta à natureza. As melodias dele nos remetem à Antiguidade. Passam pela Amazônia, mas também por Egito, Mongólia, México, Cuba e países da África, lugares distantes. O jeito como ele canta faz com que você queira pegar carona e viajar com ele por esses lugares.
É possível categorizar a sonoridade de Milton dentro de um estilo específico?
A música de Milton é diferente da música popular que se ouve nas rádios mundo afora, não é nem o pop nem o country americanos, também não é o rock inglês. Essa rítmica tem um sotaque diferente que ressoa como as batidas do coração, um ritmo tão peculiar que faz os que tocam com ele, sobretudo os americanos, se confundirem.
No disco que vocês gravaram, “Native dancer”, a maioria das faixas é do Milton. Por quê?
Milton é um gênio de diversas maneiras, e desperta essa genialidade em todas as pessoas com quem ele trabalha. Realmente, não queria escrever eu mesmo um monte de músicas para ele tocar. Isso nunca passou pela minha cabeça. Esse brasileiro merecia ser recebido e tratado como o grande artista que ele é.
Esperanza Spalding aprendeu português para cantar 'Ponta de Areia'
Foi por meio de “Native dancer” que a cantora, compositora e contrabaixista norte-americana Esperanza Spalding, de 37 anos, teve acesso à música de Milton Nascimento pela primeira vez. “Fui imediatamente lançada nessa dimensão que fazia me sentir em casa, uma casa sensorial, sônica, pela qual sempre ansiei. Fui tão impactada pelo som da voz dele, pelas melodias. Não conseguia entender as letras, mas sentia que eram lindas e poéticas, havia um senso de amor ali”, conta a artista em entrevista ao EM. Um dos maiores nomes do jazz contemporâneo, ela conquistou quatro prêmios Grammy.
A partir da colaboração de Bituca com Wayne Shorter, Esperanza mergulhou na obra do brasileiro, ouviu os discos e aprendeu as letras. “Ponta de Areia”, faixa de abertura de “Native dancer”, marcou tanto a americana que ela a regravou em seu segundo álbum, “Esperanza”, de 2008, cantando em português. “Às vezes, ainda parece que estou ouvindo Milton pela primeira vez, pois há tanta riqueza na música dele”, diz Esperanza.
Quando gravava “Chamber Music Society”, lançado em 2010, o empresário lhe perguntou com qual artista gostaria de colaborar. A contrabaixista tinha a resposta na ponta da língua. Havia apenas uma pessoa: Milton Nascimento. Esperanza apresentou a Bituca “Apple blossom”, que passou um bom tempo com a letra inacabada, mesmo diante da insistência de Milton para que ela escrevesse os versos e os mandasse para ele aprendê-los.
“Demorei muito, estava lutando para fazer essa letra. É vergonhoso, mas só terminei de escrevê-la no dia das gravações. Milton foi ao estúdio, em Los Angeles, gravar comigo. Não quero pôr palavras na boca dele, mas acho que ficou um pouco bravo comigo por causa disso”, conta Esperanza, aos risos. Mesmo assim, segundo ela, Milton iluminou com muita beleza a melodia e os versos de “Apple blossom”. “Foi uma bênção e uma prova da generosidade dele”, diz.