A Netflix já pode criar a categoria “documentários sobre golpistas” ou algo parecido, dada a profusão de histórias reais sobre pessoas que foram lesadas. Ingenuidade, paixão, solidão, não cabe aqui julgar, fato é que histórias escabrosas de gente que confiou seu dinheiro e sua vida a homens e mulheres mal-intencionados mesmerizam audiências mundo afora.
Dirigida por Chris Smith, também diretor de “Fyre Festival: Fiasco no Caribe” e produtor de “A máfia dos tigres”, dois grandes sucessos da Netflix, a série é contada em primeira pessoa por Sarma Melngailis, hoje com 49 anos.
BANCO E RESTAURANTE DE LUXO
Bonita, loira, graduada em economia por uma universidade da Ivy League, Sarma foi, até meados da década passada, mulher invejada no badalado circuito nova-iorquino. Depois de trabalhar em bancos de investimento, ela se dedicou à gastronomia, sua paixão. Em 2004, abriu o Pure Food and Wine, o primeiro restaurante de luxo de comida vegana e crua de Nova York.
Sarma Melngailis era frequente em programas de TV e lançou dois livros. Seu restaurante tinha casa cheia. O ex-presidente Bill Clinton frequentou, o ator Alec Baldwin era figura fácil por lá – tão assíduo que muitos apostavam em um affair entre o ator e a chef.
Não rolou, Sarma achava o astro velho para ela. Baldwin conheceu sua mulher, a instrutora de yoga Hilaria, no Pure Food and Wine. “Acabou que ela era muito mais jovem do que eu”, conta Sarma.
Legal e próxima de seus funcionários, a chef era amiga de um sem-teto – guardava em sua casa roupas pesadas e cobertores dele sempre que o verão apontava. Levava uma vida saudável, prezando os animais. Sua grande paixão era (e ainda é) o pitbull Leon. Mas tudo veio abaixo a partir de um relacionamento que nasceu na internet.
Sarma não viu nada de errado em um cara de nome Simon Fox, que tinha 50 mil seguidores no Twitter e escrevia coisas inteligentes e engraçadas. Se Alec Baldwin respondia a ele diretamente, era porque o cara devia ser alguém, certo?
Após meses teclando, ele foi até ela. Não era bem o cara que Sarma imaginava, a começar pelo físico, muito maior do que a chef imaginava. Mas os dois logo engataram um relacionamento, em 2011. Ele prometeu amor eterno, a expansão de seu restaurante, que transformaria em império gastronômico, e, pasmem, a imortalidade do cão Leon.
Sim, Sarma conta que Leon viveria para sempre, assim como ela e Simon. Mas para tal, a chef teria que passar por algumas provas.
Ela não viu nada demais ao descobrir que Simon era, na verdade, Anthony Strangis, que havia sido preso por se fingir de policial. Tampouco não viu problemas em ele ter um sócio (a profissão nunca foi definida, mas ela acreditava que ele era da CIA ou algo parecido) a quem deveria confiar tudo – inclusive as senhas de e-mail, celular, banco, etc.
ANEL DA TIFFANY
Os dois se casaram – os pais e a irmã dela foram comunicados posteriormente – com uma passada na Tiffany & Co. para o anel de noivado. E a partir disso, tudo começa a degringolar. Além da própria Sarma, o documentário é construído por meio de depoimentos de familiares, amigos, investidores, ex-funcionários e do jornalista da “Vanity Fair” que contou, em primeira mão, a história.
Há também muitas conversas on-line, por meio de mensagens e gravações de vídeo e voz – a quantidade é tamanha que por vezes se torna cansativo ler tantas mensagens na tela.
A partir de certo momento, Simon/Anthony assume o restaurante. Todos acharam suspeito, mas Sarma já estava tomada pela situação. Eram milhares (que, somados, se tornaram quase US$ 2 milhões) que ela depositava para o marido sem discutir. Chegou a ponto de parar de pagar os empregados. A imprensa americana noticiou a greve dos funcionários – nesta hora, ela estava na Europa, sozinha, esperando novas ordens do marido.
A demanda de dinheiro foi tanta que ela começou a passar a perna em seus investidores. A casa caiu mesmo em 2015, quando Sarma, Simon/Anthony e Leon desapareceram do mapa. Foram encontrados quase um ano depois nos confins do Tennessee por causa de um pedido de pizza e frango frito da Domino’s Pizza (ironia das ironias, tratando-se de uma chef vegana). Já havia ordem de prisão por fraude contra o casal.
A história tem outros desdobramentos. Mas o que mais chama a atenção é a maluquice. Em certo momento, você acha que ela foi dominada por uma espécie de culto – houve quem a comparasse a Patty Hearst. Por outro lado, o casamento não foi longe. Os dois dormiam em quartos separados, Sarma falava que até o cheiro do marido a incomodava. Ele é o oposto de tudo o que ela pregava e, mesmo assim, a chef só parou quando foi presa.
FIM DO SILÊNCIO
Depois de um silêncio de três anos, na última quarta-feira (16/3), dia em que a série entrou no ar, Sarma escreveu em seu site, sarmaraw.com. Disse que o dinheiro que recebeu para o documentário foi diretamente para o advogado que representa seus antigos funcionários. Também afirmou não concordar com tudo o que está no ar.
“A história é tão esquisita e complicada, mesmo para mim, que parecia inevitável que o documentário errasse algumas coisas... Eu não queria me casar com ele (Simon/Anthony), e essa parte da história foi condensada de forma imprecisa. Além disso, o final é perturbadoramente enganoso”, alegou.
“DE RAINHA DO VEGANISMO A FORAGIDA”
Série documental em quatro episódios. Disponível na Netflix.
GOLPISTAS EM CARTAZ NA NETFLIX
. “FYRE FESTIVAL: FIASCO NO CARIBE” (2019)
Documentário apresenta um dos golpes mais célebres da era da internet. O empresário Billy McFarland criou festival de música para ricos e influenciadores numa ilha das Bahamas que teria sido de Pablo Escobar. Promovido por modelos como Kendall Jenner e Alessandra Ambrósio e com o rapper Ja Rule como sócio, o Fyre Festival foi apresentado como o maior evento da história recente da música pop. Luxuoso, vendeu pacotes por até US$ 100 mil. Quando o público chegou, encontrou praticamente um canteiro de obras. Atrações canceladas, temporal, quase nenhuma comida. O mico foi acompanhado em tempo real pelas redes sociais.. “O FALSIFICADOR MÓRMON” (2021)
Série em três episódios. Conhecida pela comunidade mórmon, Salt Lake City, em Utah, assistiu a uma série de crimes na década de 1980. Integrante da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Mark Hoffman era pai de família respeitado na comunidade. Porém, forjava documentos e objetos sobre a formação da igreja que dizia serem “históricos”. Conseguia grandes quantias de membros da comunidade para adquirir tais “documentos”. Os golpes chegaram a um nível tão alto que ele fabricou bombas caseiras para forjar atentados – duas pessoas morreram e o próprio Hoffman se machucou para mostrar que era também vítima.. “O GOLPISTA DO TINDER” (2022)
Um dos maiores sucessos da plataforma este ano, o documentário acompanha três mulheres bonitas e jovens – uma norueguesa, uma sueca e uma holandesa – enganadas por um judeu israelense. As três conheceram Simon Leviev (o nome era falso) no aplicativo Tinder. Ele se apresentava como herdeiro de um império de diamantes e as levava em viagens de jato particular para hotéis luxuosos pelo mundo. À medida que a relação se aprofundava, ele se dizia vítima de perseguição. Resumindo: todas deram grandes quantias em dinheiro para o falso milionário.. “MORADORES INDESEJADOS” (2022)
Série em cinco episódios. Chegada há pouco ao catálogo da Netflix, traz quatro histórias independentes que misturam golpes e crimes. Em resumo, acompanha pessoas aparentemente inofensivas que se tornaram algozes de seus companheiros de residência. A primeira história é de uma senhora de idade respeitada na cidade que cuidava de idosos – os matava, enterrava em sua própria casa e ficava com o dinheiro da pensão. Há também um libanês que se passava por palestino e conseguiu, no Chile, verba da comunidade palestina para participar de maratonas da América do Sul enquanto dividia uma casa com jovens estrangeiros em Santiago.