Importantes filmes brasileiros dos anos 2000 a 2010 – como “Que horas ela volta?”, “O céu de Suely” e “Cidade Baixa” – chegaram recentemente ao cardápio da Netflix. A plataforma apresentou, há cerca de um mês, o catálogo “Mais Brasil na tela”, que trata de 40 produções, entre séries, filmes e documentários, que estarão disponíveis ao longo do ano. Esse cenário evidencia que a Netflix e outros serviços de streaming representam, atualmente, potente motor para a produção audiovisual brasileira.
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Em entrevista recente, Fernando Meirelles, diretor de “Cidade de Deus”, chamou a atenção para o fato de que, no contexto da pandemia e de fragilidade das políticas públicas voltadas para o setor, a cadeia produtiva do audiovisual se manteve ativa, principalmente graças às plataformas.Diretora de “Que horas ela volta?”, Anna Muylaert concorda, mas pondera que ficar dependente dos serviços de streaming não é benéfico nem para os cineastas nem para o público.
“Tem duas questões aí: a da exibição e a da produção, que se constitui hoje no ponto mais importante. A Ancine está parada, o Fundo Setorial represado, então quem está produzindo são as plataformas, e elas têm um modelo de negócio em que você dá tudo, tanto em série quanto em filme. Você passa a ser prestador de serviço. As plataformas estão entrando no país da mesma forma como os portugueses chegaram em terras brasileiras; tudo é delas”, aponta Anna.
De acordo com a diretora, cabe dar a devida importância às plataformas no atual ecossistema do audiovisual, mas é necessário haver processo de regulação, como o que está em curso na França, para que se resguarde o direito do autor. “Vai caber aos governos de cada país criarem uma legislação para proteger os autores”, destaca.
“Durante a pandemia, só trabalhou quem fez série ou filme para a Netflix e outras plataformas. Isso tem impacto, elas estão formando gente, querem produzir mais no futuro, mas é aquela história: o audiovisual está deixando de ser o que era, algo mais artesanal, com uma ideia de autoria, para virar mais um negócio tipo padaria”, adverte.
No quesito exibição, Anna Muylaert diz que as plataformas cumprem papel importante ao abrir espaço para diferentes produtos. “Estar na Netflix é ótimo para ‘Que horas ela volta?’, porque ele já estava no final da carreira de janela. Foi para o cinema, TV paga, TV aberta e agora está lá no cardápio da Netflix. Isso é ótimo, mas se a plataforma ganha dinheiro com um filme do qual sou sócia, eu também devo ganhar. Nesse caso específico, a gente ganhou, o produtor ganha, mas, no Brasil, todo filme que é produzido por eles é 100% deles”, destaca.
CHEFE DE CRIAÇÃO
A cineasta observa que o streaming mudou completamente o panorama do audiovisual de 10 anos para cá. Atualmente, as plataformas são chefes de criação durante todo o ano, com volume incessante de produção. O reflexo disso é as pessoas passarem a consumir filmes e séries de maneira um tanto obsessiva.
“Tem gente que vê três filmes por dia ou inicia uma nova série toda semana. Na minha adolescência, você ia de vez em quando ao cinema e depois tinha o período para ficar depurando aquilo. Hoje você tem uma forma de consumir mais superficial. Não digo nem que é melhor ou pior, mas é tanto filme que a gente nem se lembra do que assistiu há pouco tempo. O ser humano está consumindo audiovisual num ritmo compulsivo, então são produções feitas menos para gerar reflexões e mais para matar o tempo. Isso é ruim”, considera.
SISTEMA ALGORÍTMICO
O volume massivo de produção e a forma de consumo que ele gera é fruto da equação algorítmica elaborada pelas plataformas sobre seus produtos, lembra Anna. “Vi um anúncio da Netflix falando de 15 lançamentos na semana. O mundo está entrando no ritmo de consumo de telas, o que inclui celular na mão o tempo inteiro, que redunda na supervalorização da imagem em detrimento do real. Fui a Nova York recentemente, e a maior loja de brinquedos da cidade fechou, virou loja da Apple”, conta.Em entrevista recente, Fernando Meirelles observou que com a chegada de novas plataformas, como Amazon, Apple TV+, Disney , Star , o mercado vem se adaptando para atender a esse crescimento na demanda por conteúdo. Rodando a série “Pico da Neblina” para a HBO, ele revelou dificuldades para conseguir montadores, fotógrafos, produtores-executivos, assistentes de direção e até mesmo equipamentos.
Anna Muylaert concorda que se não fosse pelas plataformas, o cinema brasileiro poderia sofrer a mesma debilidade que se viu no governo Fernando Collor, quando a Embrafilme foi fechada. “Naquele momento, as pessoas ficaram sem trabalho, um (cineasta) foi para a publicidade, outro para a literatura, outro para o teatro. O cinema tinha acabado mesmo. Com a Ancine em estado de suspensão, teríamos cenário similar ao daquela época, com as pessoas sem trabalho. O streaming segurou a onda”, diz.
O lado perverso disso, ela aponta, é a dependência em relação a essas empresas. “O produtor ganha um cachê e acabou, o autor ganha um cachê e acabou. Cada vez mais, as plataformas são donas dos meios de produção e os criadores ficam no papel de meros funcionários, figurantes. Nessa toada, daqui a pouco não vai mais existir poesia, só algoritmo. E também não vai mais ter direito autoral”, salienta.
Este ano, Anna Muylaert filma “no modelo antigo” – com direito a Fundo Setorial, amparo da Ancine e apoio da Globo Filmes – o longa “Clube das mulheres de negócio”. “Nesse caso, nós, produtores, somos os donos do filme”, explica. Em 2023, ela fará filme “no novo modelo” – escreve e dirige, mas não é dona de nada. “Aceitei porque é o que temos para o momento”, diz.
“O cinema com incentivo fica à mercê de quem incentiva, do que acontece politicamente no país. A gente estava no auge, o cinema brasileiro presente em todos os grandes festivais do mundo. Mas aí parou tudo, e já vimos esse filme na era Collor. Tudo na vida tem lado A e lado B. O streaming tem o lado A, que é o fomento à produção, mas tem o lado B, porque são, na maioria, empresas norte-americanas que vão impor a forma de trabalho deles, com vistas a um produto que interessa a eles promover”, diz.
SOBREVIVÊNCIA
Diretora do curta “Céu de agosto”, que ganhou menção especial no Festival de Cannes do ano passado, a cineasta Jasmin Tenucci atualmente trabalha no roteiro de uma comédia romântica jovem para a Netflix. Ela concorda, em muitos aspectos, com Anna Muylaert.“No Brasil, como as leis de incentivo à cultura foram sendo minadas, por um lado as plataformas garantiram emprego, a sobrevivência de uma indústria. Então, teve esse aspecto saudável de manter todo mundo empregado, o mercado funcionando, com produtos sendo lançados. Por outro lado, a plataforma de streaming produz determinado tipo de produto muito específico, definido por algoritmo, o que é preocupante”, diz.
“Elas seguraram a onda por um tempo importante, para que a indústria não parasse, mas isso não pode seguir como algo hegemônico”, aponta, chamando a atenção para o fato de que tais empresas cumprem simultaneamente o papel de produtoras, distribuidoras e exibidoras. “Tomam conta de toda a cadeia.”
MUDANÇA
Para Jasmin, o mais benéfico para o setor é a criação de mecanismos de financiamento, para que realizadores e público não estejam sujeitos a lidar apenas com conteúdo ditado pelas plataformas.“Esses mecanismos até existem, só estão inoperantes neste atual momento. Precisamos voltar a contar com eles. É saudável para a indústria poder contar tanto com as plataformas quanto com as leis de incentivo”, afirma a diretora.