Jornal Estado de Minas

ARTES VISUAIS

Nova exposição do CCBB-BH aborda o universo dos jogos e da interatividade


Um jogo de amarelinha no qual, em vez de números, os participantes encontrarão nas “casas” nomes de lugares que sofreram com atrocidades de guerra. Uma partida de futebol em que, no campo e na plateia, misturam-se Mickey, Minnie, Padre Cícero, noivas e bailarinas. Uma mesa de sinuca (sem taco) em que convivem, numa harmonia desorganizada, elementos do xadrez, do baralho e de brinquedos tradicionais.





Bem-vindo ao mundo de “Playmode”, exposição em que é possível, também, jogar. Mas não é exatamente isso que está em jogo, com o perdão do trocadilho, na mostra que será aberta nesta quarta (30/3), às 10h, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte. 

“Tentamos criar uma composição em que as obras conseguem ser lúdicas, mas também trazem uma espécie de reflexão, mostrando que jogo não é só divertimento puro. Os jogos podem transformar uma sociedade. E cada vez jogamos mais”, comenta Filipe Pais, professor e pesquisador, que divide a curadoria com Patrícia Gouveia. Ambos são portugueses – foi no além-mar que a exposição começou sua trajetória.

“Playmode” foi exibida em 2019 no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), em Lisboa. Ao chegar ao Brasil – além da capital mineira, a mostra irá para as unidades do CCBB no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília – a mostra original teve o acréscimo de sete obras de artistas brasileiros. Ao todo, são 44 peças de criadores de nove países, divididas em três núcleos.





A visitação tem início pelo eixo “Modos de desconstruir, de modificar e de especular”, o maior dos três. A ideia dessa seção, diz Filipe Pais, é apresentar obras que pretendem “subverter o jogo” e “ressignificá-lo”.

Algumas delas são interativas, como a supracitada “Amarelinha”. No hall do terceiro andar do CCBB, abrindo a mostra, a releitura da artista americana Mary Flanagan se chama “Mapscoth – Bombscotch” (2013). Hiroshima e Nagasaki são alguns dos lugares onde o público poderá pular no jogo.
Na obra ''Xadrez autocriativo'' (2019), de Ricardo Barreto e Raquel Fukuda, seis tabuleiros do jogo formam um cubo (foto: CCBB/Divulgação)

REGRAS

O xadrez aparece em várias obras. Em “Mesa de jogos” (2020), de Laura Lima e Marcius Galan, os artistas propuseram uma quebra das regras, criando uma obra que mistura elementos de vários jogos. 

“Xadrez autocriativo" (2019), de Ricardo Barreto e Raquel Fukuda, traz duas versões. A primeira, no formato escultórico, reúne seis tabuleiros e suas respectivas peças, formando um grande cubo. Desdobrada, a obra apresenta numa mesa os seis tabuleiros prontos para serem jogados por seis duplas – mas há um livro de regras que devem ser seguidas.





Um dos artistas mais importantes do Brasil a despontar nos anos 1960 – e uma referência forte para criadores contemporâneos –, Nelson Leirner (1932-2020) está presente com duas obras, também do primeiro núcleo. Uma delas é um clássico do artista e professor. 

Em “Futebol” (2000-2001) estão reunidas figuras do imaginário popular e religioso em uma partida. Trabalho mais antigo, “Cubo de dados” (1970) é uma escultura minimalista em pequeno formato que reúne 216 dados.

VIGILÂNCIA

Mais críticas são as obras que vêm a seguir. A instalação em vídeo “Surveillance chess” (2012), que em bom português leva o nome de “Xadrez da vigilância”, é uma obra interativa criada pelos artistas Carmen Weisskopf e Domagoj Smoljo; ela, suíça, e ele, croata, às vésperas dos Jogos Olímpicos de Londres.




“Os artistas filmaram uma espécie de opressão. Criaram um jogo de xadrez para ser jogado pelas pessoas que estavam monitorando as câmeras de vigilância do metrô de Londres. Foi um jogo entre os artistas e o sistema de vigilância, de controle”, explica Filipe Pais. 

Outro vídeo é de comunicação mais direta e cala fundo nos brasileiros. Em “Morte súbita” (2014), Jaime Lauriano colocou, lado a lado, homens vestidos com a camisa da Seleção Brasileira. Nesta recriação da apresentação de jogadores de uma partida, todos estão com o rosto coberto pela camisa amarela da CBF. Ao fundo, ouve-se uma série de nomes serem apresentados – não são de jogadores, mas de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar (1964-1985). 

Outra obra de Lauriano também dialoga com o ftebol e opressão. A escultura “A taça do mundo é nossa” (2018) é uma réplica da Jules Rimet, o troféu da Copa do Mundo de 1970 roubado em 1983. A obra é tal e qual a original, mas foi construída a partir da fundição de munições utilizadas pelas Forças Armadas. 





O segundo núcleo, “Modos de participar e de mudar”, é composto por 10 jogos digitais, todos acessíveis ao visitante. “São jogos gráficos bastante simples, de pequenos estúdios, independentes”, comenta o curador.

Um dos jogos é “The artist is present” (2011), em que Pippin Barr recriou uma célebre performance que Marina Abramovic apresentou no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York. Durante três meses de 2010, período que durou uma grande retrospectiva da artista iugoslava naquela instituição, ela participou da performance, que consistia basicamente em ficar sentada em uma mesa – na outra cadeira, qualquer visitante da mostra podia se sentar em frente a ela. 

O contato entre artista e público era somente visual, pois Marina não falava nada (gerou inclusive um documentário, lançado em 2012). No videogame, o jogador explora a mesma performance. “A ideia é tentar encontrar a Marina, mas há sempre complicações. É um jogo de espera”, conta Pais.





Outro game, “Papers, please” (2013), foi criado há quase uma década por Lucas Pope, mas conversa diretamente com os dias de hoje. Remontando à Guerra Fria (1947-1991), leva o jogador até o controle de imigração de Arstotzka. Depois de uma guerra com a vizinha Kolechia, o país impôs uma série de restrições fronteiriças. O jogador deve analisar o pedido de viajantes e imigrantes, permitindo (ou não) a entrada no território. “É um espaço fictício, mas até sua linguagem gráfica remete à Rússia”, diz Pais.

Encerrando a exposição, o núcleo “Modos de transformar, de sonhar e de trabalhar”, o único que não tem nenhuma obra interativa, reúne peças que passeiam entre “o sonho, a utopia, a distopia e o trabalho”, comenta Pais.

“Atualmente, existem jogos para tudo, estamos em uma espécie de ludificação da sociedade. As próprias redes sociais se transformaram em jogos muito simples. O jogo normalmente é livre, jogamos porque temos vontade. Mas, ultimamente, há questões por vezes abusivas, por exemplo, quando se usam jogos para tornar processos (de trabalho) mais eficientes”, acrescenta o curador, lembrando que os games são muito utilizados para “formar militares americanos”. 





Duas obras do alemão Harun Farocki tratam dessa questão. Nas séries “Serious games” (2009 e 2010), o artista documentou como os jogos foram utilizados para treinar militares nos EUA. Além do treinamento, o artista mostrou como as tecnologias de realidade virtual são utilizadas para tratar do transtorno de estresse pós-traumático de jovens que retornaram de guerras.

O português Filipe Vilas-Boas encerra a exposição, com a imagem das bandeiras da China e dos EUA. Alterados, os símbolos nacionais perderam estrelas. Em “The rated Republic of China” (2017), o artista tirou algumas das estrelas da bandeira, fazendo uma alusão ao modelo de classificação que domina o mundo virtual. Já em “United likes of America” (2017), ele substituiu as estrelas dos 50 estados americanos pelo símbolo do like do Facebook. 

Na obra ''Surveillance chess'' (2012), os artistas Carmen Weisskopf e Domagoj Smoljo criaram um jogo entre eles e o sistema de vigilância de Londres, segundo o curador Filipe Pais (foto: CCBB/Divulgação)


PALESTRA DO CURADOR

Nesta quarta (30/3), às 20h, o curador Filipe Pais ministrará a palestra “Playmode: Modos de jogar, criticar e sonhar”. O encontro será no Teatro 1 do CCBB. Entrada franca. Ingressos devem ser retirados pelo bb.com.br/cultura ou na bilheteria da instituição.


“PLAYMODE”
Exposição no Centro Cultural Banco do Brasil, Praça da Liberdade, 450, Funcionários, (31) 341-9400. Abertura nesta quarta (30/3), às 10h. Visitação de quarta a segunda, das 10h às 22h. Entrada franca. Até 6 de junho