Olhando de fora, Selma é uma adolescente de 17 anos como tantas outras na França da década de 1990. Filha única de um advogado e uma ginecologista argelinos que migraram para aquele país, ela se dá bem com o pai e sofre um pouco com o desdém da mãe, que deixou a profissão para criar a filha. Nada muito digno de nota, é o que mostra o início de “Charuto de mel”, primeiro longa-metragem da cineasta franco-argelina Kamir Aïnouz.
Inédito nos cinemas de Belo Horizonte, o filme, rodado na França e na Argélia, está em cartaz nas recém-inauguradas salas do Centro Cultural Unimed-BH Minas.
A vida de Selma (Zoé Adjani, sobrinha de Isabelle Adjani) está mudando rapidamente. A partir do momento em que se interessa por um colega de colégio francês e os pais começam a planejar seu casamento (que deve ser com um filho de argelinos), a dinâmica familiar dá uma guinada.
GUERRA DA ARGÉLIA
Simultaneamente, Selma está descobrindo a sexualidade. Quer seguir o próprio caminho, e a pressão dos pais não ajuda em nada esse percurso. Em meio a isso, há a Guerra Civil da Argélia (1991-2002), que provoca o recuo das conquistas das mulheres. A mãe decide voltar ao seu país para trabalhar e ajudar outras mulheres, mesmo que isso coloque sua vida em risco.Esse drama sobre o amadurecimento traz muitos elementos da própria trajetória da diretora. “(Para fazer o filme) Me inspirei muito na obra de cineastas como Gus van Sant e Jean-Marc Vallée, nomes que no início da carreira também olharam para seus anos de juventude. Esse tipo de filme é o que envelhece melhor. Dez anos depois de lançado, por exemplo, ele continua fazendo sentido”, comenta Kamir.
Outra razão, diz ela, é que a década de 1990, os anos de adolescência da cineasta, foram “tempos dramáticos na Argélia”. “O país, caindo no terrorismo, passou a esconder as mulheres. Lembro-me de que eu e uma prima não podíamos ir mais à praia, usar biquíni. No filme, Selma está liberando seu corpo ao mesmo tempo em que o país vai na direção oposta”, continua Kamir.
A diretora comenta que há situações no drama que realmente aconteceram. E diz que tem muito dela própria em Selma. “O mais importante é que coloquei na personagem as emoções, o que senti na época, a mistura de raiva e ansiedade. Como poderia me sentir livre no meu corpo, se eu não tinha liberdade? Queria não só mostrar, mas fazer com que o público sinta uma das maiores injustiças do mundo: mulheres não têm a mesma liberdade dos homens”, acrescenta.
O IRMÃO CINEASTA
Kamir, o sobrenome logo entrega, é meia-irmã, por parte de pai, do cineasta brasileiro Karim Aïnouz. Dez anos os separam, mas ele sempre foi uma referência. “Enquanto eu crescia, o via já trabalhando. Isso, claro, me inspirou, ainda que os filmes dele não tenham me influenciado diretamente.”Mas não há como não relacionar o debate que tanto “Charuto de mel” quanto “A vida invisível” (2019) propõem sobre a invisibilidade das mulheres e sua luta por liberdade. Assim como Karim, Kamir também dedicou seu filme à própria mãe.
“Ambos perdemos nossa mãe nos últimos anos, e as duas foram cruciais para o nosso desenvolvimento, o tipo de pessoas que somos. É bonito que, coincidentemente, tenhamos feito filmes sobre mulheres”, finaliza Kamir Aïnouz.
“CHARUTO DE MEL”
(França, 2020, 100min, de Kamir Aïnouz, com Zoé Adjani, Amira Casar e Lyès Salem). Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes). Hoje (2/4), às 19h30 e 20h; domingo (3/4), às 14h e 20h; a partir de segunda-feira (4/4), às 17h e 19h30.