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Estado de Minas LITERATURA

Casarão abandonado em Paraty é o elo perdido de Thomas Mann com o Brasil

Júlia da Silva Bruhns Mann, mãe do escritor, morou no sobrado do século 18 cercado de mata atlântica, e legou sua brasilidade aos filhos


03/04/2022 04:00 - atualizado 03/04/2022 00:55
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Júlia Mann está sentada com a filha Julia no colo. Ao lado dela, de pé, estão os meninos Heinrich e Thomas Mann
Júlia Mann com os filhos Julia, Heinrich e Thomas. Os dois meninos se tornaram respeitados escritores, cujas obras trazem personagens inspirados na mãe (foto: Reprodução)

Paraty (RJ) – Foi como realizar um sonho antigo, desses que trazem, espantosamente, no meio da nebulosa onírica, personagens criados pela genialidade de alguém que você aprendeu a admirar desde cedo e povoam várias fases da sua vida. Entre o real e o imaginário, estavam lá centenas de páginas de livros marcadas a lápis, manchadas pelas digitais no uso recorrente, viradas do avesso em busca de pistas sobre a origem das histórias contadas.

Numa manhã chuvosa em Paraty (RJ), com rasgos de sol brilhando de vez em quando sobre a mata atlântica e o oceano, parei, encantado – confesso, emocionado –, diante do casarão do século 18. No sobrado hoje meio arruinado, mas ainda de pé, a poucos metros do mar, viveu, na infância, a brasileira Júlia da Silva Bruhns (1851-1923), futura Júlia da Silva Bruhns Mann, mãe do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1929.

Apelidada Dodô, a menina nasceu em Paraty, tudo indica entre as localidades de Graúna e Rio Pequeno, durante mudança da família. No livro autobiográfico “Da infância de Dodô” (“Aus Dodo kindheit”), de 1903, Julia narra os primeiros anos “na selva, ao lado do Oceano Atlântico, ao Sul do Equador, entre macacos e papagaios”.

A história de Júlia Mann, de forma especial seus verdes anos na cidade fluminense, é fonte inesgotável para pesquisadores e ficcionistas. Tanto que acaba de ser lançado “O regresso de Júlia Mann a Paraty” (Oficina Raquel), da autora portuguesa Teolinda Gersão. O título, pode-se dizer, é uma licença poética, pois Júlia nunca retornou ao Brasil após a partida, entre os 7 e 8 anos, em seguida à morte da mãe durante o parto, para viver definitivamente na Alemanha.

A obra cria três histórias distintas com personagens históricos (Sigmund Freud, Júlia Mann e Thomas Mann, que, vale dizer, nunca veio ao Brasil) e fatos reais.

Casarão mal cuidado do século 18, com janelas abertas e mofo na fachada, onde morou Julia, a mãe brasileira do escritor Thomas Mann
No Engenho Boa Vista, Júlia da Silva Bruhns Mann viveu até os 8 anos. Imóvel histórico demanda restauração urgente (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)

FANTASMAS DO DESEJO

Mas vamos ao casarão. Rondei a construção colonial, prestei atenção nos detalhes, entrei em outra dimensão, tal o desejo que me perseguia havia anos. Seria uma epifania? De uma janela, pareceu-me que o adolescente Tadzio, de “A morte em Veneza”, me espreitava, quase me considerando intruso, enquanto no vão da porta da varanda vislumbrei a sombra de Hans Castorp, como se pairasse sobre “A montanha mágica” em terras tropicais.

Admirar o casarão da antiga Fazenda Boa Vista ou Engenho Boa Vista, famosa na época pela produção de aguardente, hoje propriedade particular pertencente a uma marina distante três quilômetros do Centro Histórico de Paraty, foi o mais perto que consegui chegar, excetuando-se, evidentemente, as páginas dos livros de um autor que considero perfeito na escrita, nas histórias, no entendimento do tempo, no desenvolvimento dos personagens, na profundidade das tramas, nos laços afetivos com o leitor.

Ao chegar à Marina do Engenho, salpicada de embarcações naquele dia de mar agitado, fui informado de que não poderia entrar na casa, devido às condições precárias. Deveria respeitar a fita zebrada no entorno. Foi quando me deparei com o espectro de Félix Krull perto do pé de fruta-pão. Fiquei meio aturdido, mas logo em seguida vi a senhora Antoinette Buddenbrook, com seu “vestido preto, listrado de cinza-claro, sem enfeites” subindo a escadaria de pedra.

Despertei do delírio ao contemplar Tonio Kröger e Hans Hansen seguindo em direção ao mar, que não era o Báltico, e sim um recorte do Atlântico. Em direção oposta, vagava o compositor Adrian Leverkühn – felizmente, sozinho. Assim como surgiram, alguns dos personagens criados pelo filho da ex-moradora da casa foram desaparecendo na atmosfera mágica da região.

paraíso Como deve ter sido feliz a infância de Júlia Mann à beira-mar, “naquele pedaço do paraíso”, como bem descreveu o escritor João Silvério Trevisan no romance “Ana em Veneza”. Céu, mar, terra, pitangueiras, bananeiras, animais pendurados nas árvores, outros na toca. O coração da brasileirinha sempre aos pulos, batendo no compasso da natureza.

Ela seguiu assim, no casarão cercado pela mata tropical, até a morte da mãe, Maria Senhorinha da Silva. Não passou muito tempo e o pai de Júlia, o abastado fazendeiro alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns, naturalizado brasileiro com o nome de João Luiz Germano Brunhs, levou a menina e irmãos para seu país natal, mais exatamente para Lübeck. Nessa cidade, Júlia adotou o alemão como primeiro idioma e esqueceu de vez a língua materna.

Casada aos 17 anos com o senador e comerciante alemão Thomas Johann Heinrich Mann, de 29, Júlia teve cinco filhos: Heinrich (também escritor de renome), Thomas, Julia, Carla e Viktor. O caçula escreveu sobre a infância da mãe no Brasil.

A cada instante, diante dos meus olhos, o cenário remetia às raízes brasileiras de Thomas Mann, embora o escritor nunca as explicitasse, com raríssima citação em sua obra.

Em “Confissões do impostor Félix Krull”, escreveu sobre um casal de gêmeos, “jovem cavalheiro e jovem dama”, num hotel: “Tinham uma aparência quase que ultramarina, rosto moreno, talvez fossem sul-americanos de origem espanhola ou portuguesa, argentinos, brasileiros – são meras conjeturas.”

No livro “Terra mátria – A família de Thomas Mann e o Brasil” (2013), de Karl-Josef Kuschel, Frido Mann e Paulo Astor Soethe, há o trecho de uma carta de Thomas Mann a Karl Lustig-Prean, datada de 8 de abril de 1943, sobre o Brasil:

“Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista. Apenas uma certa corpulência desajeitada e conservadora de minha vida explica que eu ainda não tenha visitado o Brasil. A perda de minha terra pátria ('mein vaterland') deveria constituir uma razão a mais para que eu conhecesse minha terra mátria ('mein mutterland'). Ainda chegará essa hora, espero.”

Foto traz os irmãos Heinrich, Carla, Thomas e Julia Mann
Heinrich, Carla, Thomas e Julia: sangue brasileiro herdado de Júlia da Silva Mann (foto: Reprodução)

CRÔNICA DA CASA ABANDONADA

A varanda de frente para a Baía de Paraty, a vegetação exuberante, a edificação dos tempos coloniais, o telhado, enfim, todos os elementos que configuram, no calor deste momento, esta “crônica da casa abandonada” e possuída pelas histórias. E que merece urgente restauração como símbolo não só do Brasil, neste ano do Bicentenário da Independência, como também das origens do autor de “Doutor Fausto”, “O eleito”, “As cabeças trocadas” e tantos outros livros.

“A casa está abandonada. Ao longo dos anos, fiz várias denúncias ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mas nada foi feito para recuperá-la”, lamenta Diuner Mello, estudioso da história de Paraty e pesquisador de documentos em cartórios.

Responsável pela descoberta da certidão de nascimento de Júlia Mann, ele destaca que a edificação se encontra em “zona de proteção especialíssima”, pois o município de Paraty é reconhecido como Monumento Nacional. “O casarão precisa ser tombado, não podemos perdê-lo, deixá-lo cair.”

O Engenho Boa Vista foi visitado várias vezes pelo neto de Thomas Mann, o escritor Frido Mann, de 81 anos, que expôs o interesse de instalar ali a Casa Mann, semelhante à existente em Lübeck para guardar a memória da família.

A empreitada não vingou – quem sabe com as homenagens à memória de Júlia Mann, que será lembrada em 2023 pelo centenário da sua morte, o projeto finalmente decole e seja uma referência em história, literatura e tradições teuto-brasileiras.

''Cedo soou em meus ouvidos o louvor de sua beleza, pois minha mãe veio de lá, era uma filha da terra brasileira; e o que ela me contou sobre essa terra e sua gente foram as primeiras coisas que ouvi sobre o mundo estrangeiro. Também sempre estive consciente do sangue latino-americano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista''

Thomas Mann, escritor


VISTORIAS

Do casarão dos Mann, no meio da mata atlântica, vê-se o mar de Paraty
Do casarão dos Mann, no meio da mata atlântica, vê-se o mar de Paraty (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)
A direção do Iphan explica: “Ainda que não seja tombado individualmente, o casarão da Fazenda/Engenho Boa Vista, em Paraty (RJ) integra o conjunto tombado da cidade. O Iphan vem acompanhando de perto a situação do imóvel e, com frequência, realiza vistorias ao bem cultural a fim de avaliar o estado de preservação da edificação, bem como orientar os proprietários sobre as medidas necessárias para garantir a conservação do monumento.”

E mais: “Como parte desses trabalhos, o Iphan aprovou a execução de obras de caráter emergencial na edificação, que contemplam a recuperação do telhado e outras intervenções. Embora já tenham sido aprovadas pelo Iphan, essas obras ainda não foram iniciadas pelo proprietário.”

Além das intervenções emergenciais, foi encaminhado à autarquia projeto de restauro mais abrangente para o casarão. Esse projeto está sendo avaliado pelo Iphan, que vai propor alterações em prol da preservação das características do bem.

Thomas Mann com a mulher, Katia, em visita a Frankfurt, na Alemanha
Thomas Mann com a mulher, Katia, em visita a Frankfurt, na Alemanha, quatro anos depois do fim da Segunda Guerra (foto: Albert Riethausen/AP/34/7/49 )

Viagens fascinantes a bordo da literatura de Thomas Mann

Muito já se escreveu, e há muito ainda para se registrar, sobre a trajetória de Thomas Mann (1875-1955), incluindo conturbadas questões familiares, posições políticas, as duras críticas a Adolf Hitler, inquietações do espírito, o exílio nos Estados Unidos, onde trabalhou como professor na Universidade de Princeton, o suicídio do filho Klaus, em 1949, e o retorno, em 1952, à Europa após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

No casarão de Paraty onde morou sua mãe, Júlia, e não se pode entrar, devido à precariedade – basta ver o desabamento do telhado do engenho –, todas as informações passam como legendas de um filme que começou, para mim, ao ler “Os Buddenbrook”, no fim da adolescência. 

Foi ali, para minha surpresa, que descobri, na edição do Círculo do Livro, que Júlia Mann era brasileira.

CINEMA

O passo seguinte foi dado com “A morte em Veneza”, que já li algumas vezes e considero um bom início para quem quiser conhecer o escritor. Melhor ainda é, ao virar a última página, assistir ao filme de mesmo nome dirigido pelo italiano Luchino Visconti e com elenco estelar.

'Morte em Veneza'
'Morte em Veneza' deu ao cineasta Luchino Visconti a Palma de Ouro no Festival de Cannes (foto: Alfa/reprodução )


Na sequência, vieram “Tônio Kröger”, o caudaloso “Doutor Fausto”, e eu sempre deixando “A montanha mágica” para o momento oportuno. Na verdade, tinha certo medo da história, toda ambientada em um sanatório para tuberculosos, antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ledo engano.

A leitura fascinante, em quase 900 páginas, é como subir a montanha devagarinho, ficar um tempo por lá, observando o panorama, e depois começar a descida. Tem gente que volta ao topo, tal o entusiasmo, mas achei melhor mergulhar em outras épocas, temas e personagens – vale destacar que Thomas Mann costuma ser bem divertido e impiedoso.

Nesse ambiente, impossível não fortalecer a admiração pela obra monumental do autor alemão, cuja vida está recontada em “The magician”, do irlandês Colm Tóinbín, com previsão de lançamento no Brasil no segundo semestre, pela Companhia das Letras.

Na despedida do casarão, vi surgir um jovem casal, com mochila e determinação. Eles circundaram a casa, miraram o mar, observaram as treliças das janelas e depois sumiram como fantasmas. Fiquei satisfeito por não ser o único a tentar fazer parte dessa história.

Afinal, o “espírito do tempo” se faz presente nas paredes, telhas, gramados e árvores frondosas. Basta estar com os sentidos abertos e o coração liberto para seguir as linhas do escritor. E descobrir seus mistérios sem fim.

O leitor pode encontrar obras de Thomas Mann em sebos, mas nada se compara a adquirir uma nova e bem-cuidada edição, com tradução revista e, muitas vezes, contendo crítica inédita. Desde 2015, a Companhia das Letras reedita livros do escritor alemão, alguns pouco conhecidos, como o recém-lançada “Sua alteza real”.

Já chegaram às livrarias “Os Buddenbrook” (1901), “A morte em Veneza” (1912) e “Tônio Kröger” (1903), num único volume. E também os livros “Sua alteza real” (1909), “A montanha mágica” (1924), “As cabeças trocadas” (1940), “Doutor Fausto” (1947), “O eleito” (1951), “Confissões do impostor Félix Krull” (1954) e “Contos”. Ainda neste ano, deve ser lançada a nova edição de “Mário e o mágico” (1930). 

Em 2023, estão previstos os volumes 1 e 2 da tetralogia “José e seus irmãos”, que começou a ser escrita em 1926.


MÃE E FILHO,
DOIS CAMINHOS


Júlia Mann posa de lado, com os braços cruzados amparados sobre um móvel
Júlia Mann é personagem de romance da autora portuguesa Teolinda Gersão (foto: Insel/reprodução)
1851 –
Em 14 de agosto, Júlia da Silva Bruhns nasce em Paraty, entre as localidades de Rio Pequeno e Graúna. Era filha do alemão Johann Ludwig Hermann Bruhns e da brasileira Maria Senhorinha da Silva. Entre 7 e 8 anos, após a morte da mãe, Júlia e seus irmãos vão para Alemanha. Na época, havia epidemia de cólera no Brasil.

1869 – Júlia se casa com o senador e comerciante alemão Thomas Johann Heinrich Mann. O casal teve cinco filhos.

1875 – Em 6 de junho, nasce em Lübeck, no Norte da Alemanha, Paul Thomas Mann, o escritor Thomas Mann, segundo filho do casal.

1897 – Thomas Mann começa a escrever “Os Buddenbrook: Decadência de uma família”, publicado quatro anos depois.

1905 – Em 11 de fevereiro, Thomas se casa, em Munique, com Katia Pringsheim. O casal teve seis filhos.

1912 – Publica “A morte em Veneza” e começa a trabalhar em “A montanha mágica”, lançado em 1924.

1923 – Em 11 de março, Júlia Mann morre na Alemanha, aos 71 anos.

1926 – Início da redação da tetralogia “José e seus irmãos”.

1929 – Em 10 de dezembro, Thomas Mann recebe o Prêmio Nobel de Literatura.

1933 – Com a ascensão dos nazistas ao poder, o escritor parte para a Holanda, no início do seu exílio. Depois segue para Zurique, na Suíça.

1938 – Em setembro, muda-se para os Estados Unidos. Trabalha como professor de humanidades na Universidade de Princeton. Torna-se cidadão americano em 1944.

1947 – Primeira viagem à Europa depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O retorno definitivo ocorre em 1952.

1955 – Thomas Mann morre em 12 de agosto, aos 80 anos.


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