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Estado de Minas LITERATURA

Leia a entrevista que Lygia Fagundes Telles deu a Clarice Lispector

"Não sei trabalhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol", afirmou autora de 'Ciranda de Pedra', em 1977


03/04/2022 21:29 - atualizado 04/04/2022 00:20

Lygia Fagundes Telles em seu escritório, em 2000, está sentada na escrivaninha, olha para a máquina de escrever, e tem cigarro aceso na mão esquerda
Lygia Fagundes Telles e sua máquina de escrever, em 2000, ano em que lançou o livro 'Invenção e memória' (foto: Cláudio Pedrosa/CB/D.A Press/12/3/2000)
A romancista e contista Lygia Fagundes Telles, que morreu neste domingo (3/4), em São Paulo, de causas naturais, comparava o  escritor a um "visionário", com "passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador, que avança e recua no espaço".

Ela fez essa declaração a Clarice Lispector, que de 1968 a 1977 publicou entrevistas com artistas nas revistas Manchete e Fatos e Fotos. “Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra”, escreveu Clarice na introdução da entrevista com a amiga, que acabara de lançar o livro de contos “Seminário de ratos” (1977).
 
“O jeito dela escrever é genuíno pois se parece com o seu modo de agir na vida. O estilo e Lygia são muito sensíveis, muito captadores do que está no ar, muito femininos e cheios de delicadeza”, apontou a autora de “A hora da estrela”, lançado também naquele 1977. Aliás, o mesmo ano em que Clarice morreu, aos 56 anos, de um câncer no ovário.
 
Sentada no sofá, Clarice Lispector tem a máquina de escrever no colo e segura xícara de cafezinho com as duas mãos
'Lygia é um best-seller no melhor sentido da palavra', afirmou a repórter Clarice Lispector (foto: Arquivo de família)
“Quero lembrar que na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras línguas, usam-se poetas e poetisas, autor e autora. Poetisa, por exemplo, ridiculariza a mulher-poeta", advertiu a entrevistadora. E avisou: "Com Lygia, há o hábito de se escrever que ela é uma das melhores contistas do Brasil. Mas do jeitinho como escrevem parece que é só entre as mulheres escritoras que ela é boa. Erro. Lygia é também entre os homens escritores um dos escritores maiores.” E emendou: “Lygia ainda por cima é bonita”.
 
A inspirada conversa das duas está publicada no livro “Clarice Lispector entrevistas”, lançado em 2007 pela editora Rocco.
 
 
Clarice Lispector – Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?

Lygia Fagundes Telles – São perguntas que ouço com frequência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas ideias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A ideia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham), que ao menos fique a alegria de criar.

"Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei trabalhar sem a esperança no coração"

Lygia Fagundes Telles, escritora



Para mim, a arte é uma busca, você concorda?
Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade: “Chega mais perto e contempla as palavras/ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta/ pobre ou terrível que lhe deres/ Trouxeste a chave?”. Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambiguidades.

Fale-nos do “Seminário dos ratos”.
Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada ideia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis…

"As glórias que vêm tarde já vêm frias', escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente"

Lygia Fagundes Telles, escritora



Isso não é pessimismo?
Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “Quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse “Seminário dos ratos”. O que já é alguma coisa…

Como nasceu esse título?
Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.

Quais são os temas do livro?
São 14 textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei trabalhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo, tenho paixão por Deus.

''Nesse jogo ele (o escritor) acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham), que ao menos fique a alegria de criar''

Lygia Fagundes Telles, escritora



Há muita gente louca no “Seminário dos ratos”?
Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.

O que mais lhe perguntam?
Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente. 


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