A ideia central é compartilhada pelo trio. Jair Bolsonaro mira em um só ponto: a destruição. A partir desta questão, três professores universitários de diferentes áreas se uniram para refletir sobre o fenômeno do bolsonarismo.
Com lançamento nesta segunda-feira (11/4), o livro “A linguagem da destruição – A democracia brasileira em crise” (Companhia das Letras) uniu dois mineiros, a historiadora Heloisa Starling e o filósofo Newton Bignotto, e o cientista político carioca Miguel Lago.
O texto de Lago, que abre o livro, é mais conjuntural, abordando a resiliência de Bolsonaro a partir do próprio discurso amplificado pelas redes sociais. Heloisa trata do reacionarismo do grupo político no poder e Bignotto reflete sobre as influências do populismo e do fascismo no bolsonarismo.
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Miguel Lago – Temos que tomar cuidado para não cairmos em um determinismo tecnológico. Dito isso, acho que não aconteceria o bolsonarismo sem rede social. Acho que haveria extrema direita, tanto o Newton quanto Heloisa abordam o passado histórico em seus textos, ou seja, o substrato em si estava lá. Mas não vejo o Bolsonaro como uma liderança pré-rede social, tanto que ele não era. Ele não sabe falar. Ele é muito bom de falar frases supercurtas. É memético, mas quando o vemos na televisão é uma tragédia, não junta uma frase com outra. Não é uma liderança populista clássica, é carismático, mas não como no passado. As redes sociais são fundamentais para a gente entender que a extrema direita poderia ter outras caras, mais qualificadas inclusive.
Heloisa Starling – O Miguel chama a atenção para como linguagem do Bolsonaro se constrói e funciona nas redes. Ela é disseminada pelos afetos tristes. O ataque a Miriam Leitão (o deputado Eduardo Bolsonaro debochou, via Twitter, da tortura que ela sofreu durante a ditadura) é uma questão muito importante. Não se faz chacota com a tortura. E isso virou um assunto para o filho do Bolsonaro que passou a render, ganhou palco. A gente precisa chamar a atenção para essa linguagem, pois o que ela está desdobrando é o mal como instrumento da luta política. O que ele fez é muito mais do que chacota, falou que as pessoas são supérfluas, são coisas e, portanto, podem ser eliminadas. E foi com uma mulher, e uma mulher com voz pública. Lá atrás (em 2016, na votação da abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff), o pai dele evocou e colocou o (coronel Carlos Alberto Brilhante) Ustra, o único torturador condenado pela Justiça brasileira, ao lado de (Duque de) Caxias, dentro do Congresso Nacional, e ninguém fez nada. Vai chegar uma hora em que nós já não vamos mais poder fazer nada, como diria Brecht.
Heloisa, você escreveu que o “homem da massa”, aquele que vai às manifestações bolsonaristas, sabe que “sem Bolsonaro, todos voltam à situação original de irrelevância política”. É o que une as pessoas?
Heloisa Starling – Quando comecei a trabalhar no livro, uma das questões importantes para tentar entender o que o Miguel chama de “resiliência do Bolsonaro” era o que teria acontecido com a sociedade brasileira para que ela não só o apoiasse, mas que continuasse apoiando três anos depois e agora, com tal vigor, está disposta a reelegê-lo. Acho que num ponto houve o processo do esgarçamento do sentido de pertencimento social, da relação das pessoas na sociedade. Na hora em que o sujeito está sozinho, ele não opera mais com a classe, não tem mais comunidade. Então, de um lado, a sociedade perdeu esse sentido, cada um está sozinho por sua conta. As desigualdades são vistas individualmente. Tudo aquilo que perdi, meus privilégios, meu emprego, eu vivo individualmente. A minha hipótese é que esse sujeito ressentido encontrou uma acolhida (em Bolsonaro). Diz que a culpa não é sua, constrói uma história para você, dizendo de que teve um tempo em que tudo funcionava bem no Brasil, todos eram felizes, e que temos que voltar a este tempo. Você tem um conjunto que chamei de afetos tristes que vai disseminar a linguagem – o ressentimento é o caldo que está fervendo.
Newton, a partir da análise de Freud em “Psicologia das massas e a análise do eu” (1921), você escreve que Bolsonaro “é a confluência de uma ideia com um líder que tornou visível e aplicável um conjunto de proposições, mais ou menos extremadas, que já faziam parte do universo político brasileiro”. Ou seja, ele foi o canal?
Newton Bignotto – Rupturas vão sendo feitas e, às vezes, não são identificadas mesmo pelos estudiosos mais argutos. Na questão do Freud, um dos pontos é a pulsão de morte. Ela diz respeito ao indivíduo, mas também às sociedades de massa. Todos nós fomos pouco atentos para a transformação do Brasil da primeira metade do século 20 para o de hoje, que é plenamente uma sociedade de massa. E tais sociedades respondem a questões políticas de maneira diferente das sociedades tradicionais, como era o Brasil ainda rural em boa parte da primeira metade do século 20. O bolsonarismo e o Bolsonaro nascem como uma quebra dos padrões de comunidade, de uma massa à cata de um líder. A identificação com o líder não se dá com a expressão de interesses racionalmente propugnados, mas em grande parte com adesão emocional, e esta faz com que a massa se torne infensa à própria realidade. Em qualquer lugar, eu diria que a popularidade de um presidente, que tem atuação de tal maneira ruim numa crise sanitária que provoca o aumento do número de mortes, estaria altamente comprometida. A morte nos interpela nesse diálogo entre pulsão de vida e de morte. Só que o encontro de pulsão de morte produz um resultado inesperado, um bolsonarismo resiliente. Acho que nos preparamos mal para a compreensão das dinâmicas das sociedades de massa. Agora, com meios de comunicação horizontais, a expectativa de pertencimento é exatamente o quê? Uma abstração, que é a rede. O Bolsonaro, no plano emocional, foi capaz de capturar uma demanda por exclusão. Somos unos desde que excluamos todos os outros das comunidades frágeis, como os indígenas, a comunidade LGBT. É uma comunidade fictícia baseada no ressentimento e no elogio da violência.
O que Bolsonaro tem de original diante de outros líderes de calibre destrutivo como Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (EUA) e Rodrigo Duterte (Filipinas)?
Newton Bignotto – Acho que o Bolsonaro radicaliza a noção de ditadura. Há um elemento de destruição que é absoluto, pois ele não quer construir rigorosamente nada. É um projeto de destruição que não se vê em outros líderes, então acho que isso é original dele. É algo que não se vê nem mesmo no Trump: ele não desmontou, por exemplo, a Receita Federal dos EUA, coisa que do ponto de vista da governabilidade é insana. Bolsonaro dá centralidade à ideia da destruição.
Heloisa Starling – Talvez seu traço original seja a radicalização da morte. Como assumir o poder, levar a morte às últimas consequências e a sociedade assistir a isso. A sociedade precisa reagir, pois se não houver limites, significa que ela sofre de apatia e de degradação dos laços da comunidade. Todos os governantes evocam o passado. O Trump tem sua utopia regressiva, que é a de fazer os EUA grandes novamente. Mas quando ele olha para o passado, faz um gesto em direção a um projeto de país. O Bolsonaro, em sua utopia regressiva, mostra ausência de projeto de país. Ele não evoca a ditadura dos generais, do Geisel, do Golbery, do Costa e Silva, mas a ditadura do porão, da linha dura, dos oficiais de baixo escalão que se comprometeram com a repressão. Era ocupar o poder e destruir a democracia. E foi esta turma que procedeu às mortes.
Miguel Lago – O Orbán, que vem de uma estrutura mais tradicional político-partidária, tem um partido que construiu com movimento social através de um trabalho de mobilização bem feito. O Trump é um outsider que se especializou em trabalhar a própria imagem, uma celebridade que acabou sendo abraçada, após as prévias, pelo Partido Republicano. O (primeiro-ministro Narendra) Modi foi um governador bem avaliado na Índia, de um partido importante. O Bolsonaro chegou de paraquedas: não tinha partido político, não tinha trajetória política de gestão que o qualificasse para o cargo, também não era uma personalidade. Era um grande youtuber. Ele entrou com menos amarras, se elegeu muito mais sozinho do que os outros e então devia muito menos favor, tinha mais liberdade de atuação. O que acho interessante na atuação dele é que Bolsonaro se comporta como ativista, mesmo governando. E o ativista precisa radicalizar. É uma postura revolucionária nesse sentido: vou radicalizar, radicalizar, até ver onde me deixam ir.
ENCONTRO MARCADO
Os três autores de “Linguagem da destruição” vão se encontrar em 28 de abril, no projeto Sempre um Papo. O bate-papo com Heloisa Starling, Newton Bignotto e Miguel Lago será às 19h no Teatro João Ceschiatti do Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro), com entrada franca. O evento será transmitido pelas redes sociais do projeto.
“LINGUAGEM DA DESTRUIÇÃO – A DEMOCRACIA BRASILEIRA EM CRISE”
>> De Heloisa Starling, Miguel Lago e Newton Bignotto
>> Companhia das Letras
>> 200 páginas
>> R$ 69,90 (livro)
>> R$ 39,90 (e-book).