Na semana passada, José Alberto Nemer estava se recuperando, depois de passar alguns dias com febre e dores no corpo, de uma COVID-19 que ele põe na conta de uma viagem a São Paulo. “Estava na SP-Arte e fiquei constrangido, porque estava todo mundo sem máscara; acabei tirando a minha também. Tenho certeza de que peguei foi lá”, afirma.
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Pertencente à geração dos chamados desenhistas mineiros, que se afirmou no cenário da arte brasileira a partir da década de 1970, Nemer diz que as obras foram naturalmente atravessadas pela condição em que foram criadas.
“Acho que a reclusão se expressa neste trabalho. Nunca fui um artista muito disciplinado na criação. Costumo dizer que pinto quando não tenho mais nada para fazer. Desta vez, em casa o tempo todo, eu pintava, terminava uma obra e já começava outra, numa sequência, o que acabou gerando uma unidade. Essa exposição traz um período concentrado de trabalho. A pandemia me deu essa disciplina”, aponta.
Ele diz que, além da técnica empregada, há outros pontos de diálogo entre as obras que compõem a mostra, mas ressalva que não houve nenhum tipo de premeditação ou intenção temática.
UNIDADE
“Olhando o contingente agora, com o recuo do tempo, é que vejo que há uma unidade, mas não foi algo preconcebido. Foi simplesmente porque um trabalho deu sequência a outro, que deu sequência a outro, e assim por diante. Essas obras têm formas e cores que variam muito, mas não têm nada ali que destoe do conjunto”, observa.
A relação de Nemer com a aquarela remonta aos primórdios de sua formação acadêmica, na Escola de Belas Artes da UFMG, onde posteriormente veio a lecionar. Para que esse caso de amor com a técnica se consolidasse, no entanto, foi preciso um hiato, que se deu a partir de sua graduação. Ele conta que o ensino da aquarela era muito limitador e por isso ele abandonou a prática tão logo se formou, passando a investir no desenho.
“Na Escola de Belas Artes, na época em que estudei lá, o curso de aquarela era muito restritivo, cheio de regras. Às vezes eu estava pintando, o professor vinha e dizia que aquilo não era aquarela. Se eu usava preto, ele vinha dizer que não se usa preto na aquarela. Daí eu parei”, recorda. Ele diz que só foi fazer as pazes com a técnica anos depois, como parte de um processo terapêutico.
“Eu propus à minha analista que os relatórios que eu deveria fazer fossem em forma de aquarelas. Sintomaticamente, comecei pelo preto, com cenas do meu imaginário e do cotidiano, num conjunto que, aliás, batizei de ‘Ilusões cotidianas’. Continha toda uma mitologia contemporânea. Expus muitos desses trabalhos, em São Paulo e na Bienal de Cuba, por exemplo”, conta.
ESPECIALIZAÇÃO
A partir daquele momento, nos anos 1980, a aquarela tornou-se uma constante, indissociável do trabalho de criação artística de Nemer. Sua última grande exposição em Belo Horizonte, no Espaço Cultural do Minas Tênis Clube, em 2019, também foi de aquarelas.
“Ainda sou muito relacionado com o desenho, mas há décadas eu trabalho só com aquarelas. Trato dela como uma linguagem de especialização, não como uma passagem para qualquer outro tipo de linguagem, como a pintura ou coisa que o valha. Acho que a aquarela é onde meu trabalho alcança um resultado pertinente”, avalia.
Ao falar de seu processo de criação e da psicanálise, Nemer destaca a importância da aquarela em sua trajetória pessoal e profissional. Ele é categórico ao afirmar que a técnica o ensina a viver.
“Me ensina a aceitar o imponderável. A aquarela obedece ao controle da criação até certo ponto. A partir daí ela se torna indomável. O pigmento com água numa superfície grande e branca do papel tem um comportamento imprevisível. O desafio está justamente em incorporar o aleatório, transformar a surpresa em linguagem”, aponta.
Ele diz que sempre se considerou uma pessoa controladora e, nesse sentido, a aquarela é uma técnica que o obriga a deixar fluir, o torna permeável ao acaso, sem que isso represente uma angústia.
“Não se trata apenas de lidar com o imponderável, mas sim de inseri-lo numa linguagem artística. Não é qualquer escorrida que soma à obra. Meu trabalho passa por aquilo que o Olívio Tavares de Araújo falava sobre o diálogo entre a razão e a sensibilidade, do encontro do aleatório com a geometria”, diz.
“Às vezes eu começo construindo uma geometria que, na metade, acaba se desconstruindo; é quando você reconhece que a aquarela é indomável, escorre até onde quer escorrer e o pigmento se concentra onde nem sequer imaginávamos. Todos os deslizes são incorporados e fazem parte do processo não só da aquarela, mas da arte como um todo”, acrescenta.
E quando o aleatório ou a surpresa estão em completo desacordo com o que o artista pensa ou deseja, isso implica o descarte da obra? “Descarto muito pouca coisa, mas acontece, sim. O que é irônico e paradoxal é que, quando isso acontece, é mais por ‘erros’ que eu cometo na aquarela do que propriamente pelo caráter indomável que ela tem; é mais pelo que faço do que pelo que deixo de fazer”, aponta.
A exposição que ocupa a Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard a partir de hoje é basicamente a mesma que passou por São Paulo e Porto Alegre. Nemer diz que, nesse percurso que a mostra cumpriu até aqui, algumas obras foram vendidas, mas, como a produção foi intensa ao longo dos últimos dois anos, ele tinha outras para substituí-las, sem que houvesse prejuízo ou descaracterização do conjunto.
RECEPÇÃO EM SÃO PAULO
Sobre a recepção que “Aquarelas recentes” teve tanto no Instituto Tomie Ohtake quanto na Fundação Iberê Camargo, ele diz, a propósito, que foi excelente. “Foram dois períodos expositivos muito bons, apesar das restrições de público em função da pandemia. Na abertura, por exemplo, eu tive o direito de convidar 30 amigos apenas, não mais que isso. Tudo era muito rígido, mas fiquei bastante feliz com o resultado. O catálogo ficou muito bom, teve uma cobertura excelente da imprensa e gerou uma repercussão legal”, aponta.
Ele também diz que os dois espaços por onde a mostra passou são “espetaculares” e que, assim como a Fundação Clóvis Salgado, são essas instâncias que têm dado sustentação às atividades culturais neste momento tão difícil para o setor.
“A exposição que chega agora ao Palácio das Artes, depois de passar pelo Instituto Tomie Ohtake e pela Fundação Iberê, é um exemplo positivo de acolhida por parte das instituições. Todos os três espaços fazem um trabalho sério e dinâmico e devem servir de parâmetro quando se fala em gestão cultural”, comenta.
O panorama da cultura brasileira na atualidade é muito rico, mas as políticas públicas, no geral, têm dificuldade de acompanhá-lo, segundo o artista. Ele considera que, especialmente no âmbito federal, o atual cenário é dramático. Nemer identifica um desmonte da cultura, com órgãos responsáveis pela gestão do setor sendo muito mal administrados.
“Para se ter uma ideia, estou com um processo para conseguir recursos, via Lei Rouanet, tramitando há dois anos sem nenhuma resposta. É uma loucura total. O Instituto do Patrimônio Histórico está uma lástima, a Funarte está uma lástima. Os órgãos de cultura no plano federal estão completamente à deriva. Num panorama mais geral, o que salva são certos espaços, como esses em que tenho exposto. Eu navego é por aí e sou muito grato às portas abertas por esses institutos e fundações.”
SURDINA
Com curadoria do professor Agnaldo Farias, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e crítico de arte, também responsável por organizar a última exposição de Nemer, em 2019, “Aquarelas recentes” é, conforme aponta o artista, uma mostra que pede uma atmosfera intimista.
Nemer diz que o público será apresentado a uma exposição que se desvela em seus mistérios e sutilezas. O projeto expositivo da Grande Galeria foi pensado com o intuito de cumprir esse papel.
“A exposição tem uma ambientação de câmara, não de orquestra grandiloquente. A produção do espaço, com pessoas sensíveis, foi muito atenta a esse detalhe. Experiências anteriores me mostraram o quanto os visitantes se sensibilizam quando veem algo em surdina. As pessoas até falam baixo, se envolvem com aquilo que está sendo mostrado. Essa é uma recompensa para o artista, o fato de mostrar a obra e sentir que ela é vista como se deve.”
“NEMER – AQUARELAS RECENTES”
Individual do artista, a partir desta terça-feira (19/4) até 5 de junho, na Grande Galeria Alberto da Veiga Guignard, do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro – 31 3236-7400). Horário de visitação: das 9h30 às 21h, de terça-feira a sábado, e das 17h às 21h, aos domingos.