Jornal Estado de Minas

LIVRO

Autora analisa desprezo de Bolsonaro pelas instituições a partir de imagens


Em 14 de fevereiro de 2019, um mês e meio depois de ter sido empossado como o 38º presidente do Brasil, Jair Bolsonaro comandou, no Palácio da Alvorada, reunião com ministros e integrantes da equipe econômica para definir o texto da reforma da Previdência. A redação final seria enviada uma semana mais tarde para o Congresso. 





Naquele dia, o então líder do governo na Câmara Major Vítor Hugo postou no Twitter: “Batendo o martelo na reforma da Previdência. Justa para todos e na medida certa”. O texto veio acompanhado de uma fotografia dos participantes da reunião, Bolsonaro no meio,  calçando chinelos e vestindo uma calça de nylon e um paletó que mal escondia a cor verde da camisa do Palmeiras com a qual ele havia presidido o encontro.

Tal imagem motivou Luciana Villas Bôas, professora do Departamento de Letras Anglo-Germânicas da UFRJ, a fazer uma investigação sobre as imagens e os símbolos na política, a partir da eleição de Bolsonaro. “A República de chinelos – Bolsonaro e o desmonte da representação” é o título do primeiro dos dois ensaios que compõem o recém-lançado livro homônimo (Editora 34). O filósofo mineiro Newton Bignotto assina o posfácio.

A obra apresenta uma leitura renovada sobre os mecanismos da representação política no século 21, a partir da chegada de Bolsonaro ao poder. A autora procura fazer uma análise objetiva sobre o sentido do voto, a distinção entre os âmbitos público e privado e a importância da simbologia para a sobrevivência da democracia no Brasil.






ARMAS

“A imagem mais importante, que é a síntese da atualidade na política, são as armas sobre a urna (que eleitores levaram para dentro da cabine de votação no primeiro turno das eleições de 2018 e que foram amplamente difundidas nas redes sociais). Fiquei muito chocada. Percebi que estava em curso um ataque ao símbolo máximo da democracia, pois a violação não é só do Código Eleitoral, mas de todo o imaginário essencial para a ordem política. Logo veio a posse e percebi a quebra da liturgia do cargo. O que significa o exercício do que chamo de fenomenação do Bolsonaro no cargo de presidente?”, afirma ela.

O primeiro ensaio analisa o “desrespeito à lógica e à representação”, a mistura entre a pessoa física e a pessoa política a partir de três aspectos: a supracitada reunião de chinelos; uma manifestação bolsonarista na Avenida Paulista, em 21 de outubro de 2018, em que o então candidato falou com seus apoiadores da área de serviço de sua casa, por meio de um celular cuja imagem foi projetada em um telão; e o baixo calão utilizado pelo presidente, algo que já se tornou corriqueiro em sua administração. Luciana exemplifica a “incontinência verbal” do mandatário nas reuniões para a tomada de medidas contra a disseminação do novo coronavírus.

“Penso na representação como a encenação dos meios que possibilitam a corporificação do poder. São símbolos teatrais e espaciais. Basta pensar em Brasília, com a imagem do Congresso Nacional, para trazer isto à tona”, pontua Luciana. Para ela, na atual administração federal, os elementos são de um “incrível populismo”.





Jair Bolsonaro preside reunião para discutir a reforma da Previdência, em fevereiro de 2019, vestindo roupa esportiva sob o paletó e calçando chinelos (foto: Twitter/Reprodução)

CONFUSÃO

“Vai desde a indumentária, o palavrão, até eventos históricos fundamentais. Há uma confusão do ordenamento entre o espaço. Isso significa uma ruptura, um desprezo pelos espaços democráticos e pelo pluralismo”, diz.

Para a autora, o segundo ensaio, “Armas sobre a urna”, é ainda mais importante do que o primeiro, pois trata do “símbolo máximo” da democracia. A votação, observa Luciana, “é o momento em que todos somos iguais e soberanos.”

Sobre a viralização da imagem de armas durante o processo de votação no primeiro turno de 2018, a autora escreveu: “Ao acenar para a sujeição da liberdade à coação, do direito à bala, ameaçam, dentro do espaço em que se atualiza o princípio da soberania popular, subvertê-la”.





A reação, na época, foi rápida. No segundo turno, os eleitores de Fernando Haddad mobilizaram-se e, em todo o país, pipocaram fotos de pessoas empunhando livros para irem votar. A questão armas versus livros permite várias leituras, que Luciana destrincha em seu texto.

“O livro, naquele momento, não era uma demonstração de status, mas sim de concepção de democracia. Tinha a ver com pluralismo e debate, mas tendo clara a centralidade da educação”, aponta. 

O que ocorreu quase quatro anos atrás dentro de cabines de votação acabou sendo prolongado na gestão federal. “Houve a liberação do porte de armas e uma tentativa de taxar livros, só para citar uma coisa mais evidente”, afirma a professora.





“Qual é a concepção de poder em que armas e livros estão reivindicando para si um espaço legítimo da democracia?”, questiona a autora. “Tento entender o que é a urna. Ela está ligada justamente à problemática da representação, pois é aquela que intermedeia o momento de realização da soberania popular.”

Situando a urna ao longo da história, Luciana comenta que o lugar dela, no passado, era o do “monarca do direito divino, aquele que tinha o fundamento absoluto”. Diferentemente da monarquia, lembra a autora, a “urna é o ponto de entrada e de saída da vontade popular. Ela é emblemática do caráter mundano da democracia. Ou seja, você pode agradecer aos céus ao ganhar as eleições, mas as suas preces não vão mudar a lógica terrena da urna”.

Embora se dedique a destrinchar a simbologia da gestão Bolsonaro, Luciana não tem a intenção de analisar se as ações são ditadas por marketing ou por “inépcia” do atual ocupante da Presidência. 





“Isso (os atos que ela analisa) se tornou uma práxis. Estou mais interessada em ver os efeitos disso. As causas envolveriam outras questões, além de psicanalistas e sociólogos. O que me interessa é ver como ele se comporta diante dos espaços tradicionais do pluralismo da democracia.”

A seis meses de uma nova eleição presidencial, a autora chama a atenção para o fato de que continua em voga o que ocorreu no pleito passado. “O que está em jogo nas eleições é a incrível hostilidade contra as instituições. A gente está sempre se surpreendendo e ficando chocada, mas Bolsonaro é incrivelmente coerente. O que ele prometeu (em campanha) é isto aí, então já era para termos nos acostumado a lidar. A minha contribuição é trazer para a discussão a dimensão da simbologia.”
(foto: Editora 34/Divulgação)

“A REPÚBLICA DE CHINELOS”

• Luciana Villas Bôas
• Editora 34 (112 págs.)
• R$ 47