Depois de ser premiado em vários festivais mundo afora e realizar o feito inédito de disputar as categorias melhor animação, melhor documentário e melhor filme internacional no Oscar deste ano, finalmente “Flee” estreia no circuito comercial brasileiro, nesta quinta-feira (21/4).
É a oportunidade de o público conferir um longa que não só é merecedor de todas as láureas conquistadas até agora, como as transcende. Trata-se de uma obra de arte refinada.
“Flee”, que na versão brasileira ganhou o subtítulo “Nenhum lugar para chamar de lar”, é dirigido pelo dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, a partir de uma série de entrevistas e conversas com um amigo identificado no filme como Amin Nawabi. Logo no início, um letreiro avisa que alguns nomes e locais foram alterados para proteger os membros do elenco.
Atualmente com uma bem-sucedida carreira acadêmica na Dinamarca, esse amigo do diretor é um refugiado afegão, gay, que, no momento em que conta sua história, está prestes a se casar com o noivo. Botar para fora os traumas que guarda de seu passado é uma forma de apaziguar o presente e ter a certeza de que encontrou o seu “lugar para chamar de lar”.
A partir dessa premissa, Rasmussen constrói uma obra cheia de camadas, que tange vários conteúdos, questões históricas e geopolíticas, sem nunca perder de vista o plano da intimidade e da personalidade de Amin.
A interferência dos EUA na tomada do Afeganistão pelo Talibã, durante a infância do personagem; a tentativa de fugir do horror instaurado; o drama dos refugiados; a situação de precariedade e opressão na Rússia logo após o fim da União Soviética, no início dos anos 1990 – tudo isso é amalgamado de forma orgânica e harmoniosa em favor de uma narrativa envolvente, que nunca perde o prumo.
ATMOSFERA POÉTICA
A história de Amin costura poeticamente a descoberta da homossexualidade, o profundo afeto em suas relações familiares, as instâncias da amizade e do amor e o calvário de quem precisa fugir de sua terra sem ter exatamente para onde ir – o que “Flee” amplifica ao mostrar de forma crua e objetiva, sem precisar recorrer a artifícios.
Se o conteúdo que “Flee” apresenta é tão exuberante, a forma acompanha essa riqueza em perfeita sincronia. O documentário – por vezes perde-se a dimensão de que é disso que se trata, dada a grandeza épica e a profundidade emocional da obra – alterna imagens reais, de arquivo, dos anos sombrios que Amin viveu tanto no Afeganistão quanto na Rússia, relacionando fatos e acontecimentos da época com a animação, que ocupa a lacuna da intimidade que tais registros não alcançam.
Na maior parte do tempo, o que se vê na tela é um traço de animação 2D simples, limpo, mas que se traduz em figuras muito expressivas. Esse desenho eventualmente se dissipa num traço preto e branco mais difuso, quase um borrão, para expressar os momentos mais nebulosos da memória de Amin, que encobrem as passagens mais difíceis e dolorosas de seu relato. Em qualquer uma de suas camadas formais, a animação é cativante, vigorosa, autônoma e, ao mesmo tempo, dialógica com as imagens reais de arquivo.
TEMPERO AGRIDOCE
Transitando entre o presente, quando Rasmussen conversa com Amin, e o tempo e o espaço a que a memória deste remete, “Flee” abarca com lirismo a dura realidade que foca, numa equação rara que causa tanto deslumbramento quanto angústia.
A imagem de Amin correndo alegre pelas ruas de uma ainda idílica Cabul – pelo menos aos olhos da criança que ele foi – trajando as roupas de sua irmã, em contraste com a cena em que um grupo de refugiados é embarcado em um contêiner hermeticamente fechado, dá o tempero agridoce que o filme carrega como trunfo dramático.
Entre os preciosos ingredientes que compõem “Flee”, pontuam ainda, aqui e acolá, gracejos e referências pop, como a música “Take on me”, do A-ha, que toca no walkman do garoto Amin, ou uma cena do filme “O grande dragão branco”, que ecoa uma passagem em que ele fala de seu particular interesse, desde criança, por Jean-Claude van Damme, que estampa pôsteres em seu quarto.
Nenhuma ponta do filme está solta. Tudo se conecta e faz sentido numa narrativa que, sem perder a unidade, se revela caleidoscópica. A pletora de informações que “Flee” traz não compromete o convite que ele faz ao envolvimento, que é fácil, fluido e imediato. Não é preciso mais do que 10 minutos transcorridos para embarcar nas lembranças de Amin e viver com ele as muitas dores e as poucas delícias que marcaram sua infância e juventude.
“FLEE – NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR”
(Dinamarca, 2021, 89min, de Jonas Poher Rasmussen). Em cartaz a partir desta quinta (21/4) no UNA Cine Belas Artes 1, às 14h30, 16h50 e 18h50