Para quem assistiu ao anime “Kotaro vai morar sozinho”, na Netflix, a premissa de uma criança de 4 anos viver por conta própria pode parecer absurda. Uma versão mais moderada, entretanto, pode ser assistida em “Crescidinhos”, reality show também disponível na plataforma de streaming.
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No Twitter, o perfil @yuri_kaaa comentou a repercussão que a revista Veja deu ao programa, ao retratá-lo, em sua manchete, como "o bizarro reality japonês que 'abandona' crianças pelas ruas".
Para Yuri, que é tradutora e revisora de japonês para inglês e português e atualmente mora em Tóquio, se banir o uso da palavra bizarro em reportagens sobre o Japão, grande parte dos jornalistas não conseguirão mais escrever sobre o país asiático.
Gabriel Akira, professor de japonês, estudante de direito da USP e integrante do coletivo asiático-brasileiro Dinamene, que discute questões das diásporas asiáticas, essa não é a primeira vez em que uma situação assim ocorre em relação a retratos da cultura japonesa no Brasil. O próprio uso da palavra oriente já indica algo exótico em contraposição a um suposto “ocidente” civilizado, ao seu ver.
"Não é um caso isolado. A gente vê esse tipo de repercussão em diferentes coisas, não só ligadas ao Japão, mas, de maneira geral, a qualquer coisa asiática. O Japão acaba ganhando um certo protagonismo na mídia. Hoje, vemos isso em diferentes formas, desde estereótipos negativos até, inclusive, estereótipos positivos, de certa maneira, e aí entre aspas. Mas, por exemplo, no caso do Japão, a gente sempre vê o país sendo retratado ou como uma coisa bizarra ou como um lugar muito avançado tecnologicamente, sendo que não é nem uma coisa nem outra”, comenta.
Para ele, o Japão é uma sociedade de seres humanos que tem seus problemas, seus aspectos interessantes, enfim, questões positivas e negativas como qualquer sociedade. “A brasileira também é assim. Basta tentar inverter um pouco a relação, o ponto de vista. Tentar estigmatizar isso como uma coisa única do 'bizarro japonês' é um problema. Se fosse um caso isolado, passaria, mas não é isolado”, acrescenta.
Akira, que já morou no Japão, confessa ter ficado surpreso ao saber do lançamento do reality por aqui e credita essa repercussão ao fato de os japoneses incentivarem as crianças a serem mais independentes em relação aos pais do que os brasileiros. A preocupação dos japoneses quanto à segurança, entretanto, é a pedra fundamental não apenas dessa cultura de incentivo, mas também do reality show.
Em “Crescidinhos”, as crianças que participam das gravações são selecionadas após longa avaliação e contato com os responsáveis. Os vizinhos e comerciantes da região também são avisados sobre a produção e as únicas pessoas que não sabem sobre o programa são justamente as crianças. Os pequenos são seguidos por equipes de gravação com câmeras escondidas ou disfarçadas como malas de mão.
AUTONOMIA
Akira destaca que, em ambas as situações, as crianças estão em ambientes controlados, quer pela produção do programa, quer pelos grupos comunitários de moradores que prezam pela segurança dos pequenos a caminho da escola.
Ele comenta que a criança é incentivada, desde cedo, a ir para a escola sozinha ou acompanhada de colegas, sobretudo em cidades menores, mas também, em menor medida, nas grandes metrópoles. Raramente as crianças não vão sozinhas ou em grupo para a escola. Há um processo de educação por parte das próprias escolas sobre os cuidados a serem tomadas ao atravessar as ruas, evitar contato com estranhos, e outros protocolos.
“O programa é tão antigo que chegou a ter episódios especiais de crianças que foram filmadas e depois de crescidas são entrevistadas de novo. De fato, tem um certo choque cultural, porque isso é realmente algo cultural do Japão. Não nesse nível de exagero do programa de mandar uma criança de 2 anos andar quilômetros para comprar alguma coisa no supermercado, mas é algo cultural bem forte incentivar que as crianças tenham de fazer determinadas tarefas, como aparece até no título original, algo como minha primeira tarefa. Isso é muito incentivado, porque valoriza a autonomia da criança”, comenta Akira, destacando a preocupação japonesa com a segurança pública.
Plataforma aposta na influência asiática
A Netflix está apostando firme na influência cultural asiática. Depois do sucesso da série sul-coreana “Round 6”, a plataforma de streaming já lançou a versão japonesa do reality “Casamento às cegas”, além de “Crescidinhos” e diversos animes antigos e mais recentes.
Para Gabriel Akira, professor de japonês e integrante do coletivo asiático-brasileiro Dinamene, entretanto, a questão é como se dá o interesse do público em relação a produções asiáticas feitas para japoneses, em ambientes próprios e que muitas vezes passeiam por diferentes lugares do Japão, o que é interessante para quem deseja conhecer melhor diferentes aspectos da cultura nipônica.
“Muitas vezes, as pessoas consomem essas coisas de maneira muito superficial e acabam esquecendo que existe uma questão cultural por trás. Não é que você precise ser doutor em sociologia para assistir a um seriado. O problema não é esse. Você pode assistir ao seriado antes de dormir, como diversão. A questão é trazer certas pautas sociais em cima disso sem fazer nenhum filtro. Sinto que, às vezes, as pessoas acessam esses conteúdos e pulam etapas para tirar conclusões muito precipitadas”, ressalta.
Para o professor de japonês, a tradução para línguas latinas e anglo-saxãs esbarra em problemas técnicos de revisão que podem passar despercebidos para leigos, mas, para olhos mais atentos, são reconhecíveis e não ocorrem, por exemplo, do inglês para o português. Ele também cita a falta de representatividade na escolha de dubladores não étnicos em filmes com personagens étnicos.
REPRESENTATIVIDADE
“Na questão da dublagem, uma coisa que sempre acabam usando como argumento é de que 'é só uma voz e as pessoas não vão ver', mas é justamente a preocupação com os postos de trabalho dessas pessoas e com a ausência dessas pessoas que faz com que a gente discuta a representatividade. É claro que representatividade não é um fim em si mesmo, mas essa discussão está ligada, na verdade, a um fator anterior, que é o fato de que o mercado tem um padrão branco, masculino. A representatividade não seria necessária se essa não fosse a regra, mas essa é a regra. E aí existe um pouco essa lógica de ter que, artificialmente, forçar com que exista o mínimo de diversidade em certas atuações, no caso a dublagem, para que essas pessoas consigam ter algum espaço”, explica.
Para o professior Akira, não há espaço melhor do que filmes que tratam dessas temáticas.
“Agora, isso não significa que deva se restringir a 'ah, então a gente só vai ter dubladores asiáticos quando a gente estiver falando de filmes com asiáticos'. Não! Porque essa não foi a realidade com dubladores brancos. Então, acho que o debate precisa ser expandido um pouco para isso também. E ele é, claro, mas acaba ficando restrito à representatividade como um fim em si mesmo”, finaliza Akira.
* Estagiário sob a supervisão da subeditora Tetê Monteiro