Quando aceita conduzir uma oficina de teatro para um grupo de detentos numa prisão onde 500 homens cumprem pena por seus crimes, o ator Étienne Carboni (Kad Merad) está pensando em garantir seu ganha-pão.
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De início, Étienne propõe aos detentos exercitarem suas habilidades de interpretação com as “Fábulas”, de La Fontaine. Quando a convivência com os internos se torna mais estreita, o diretor percebe que a espera (por uma visita, pelas refeições, pelo fim do dia, pelo término da pena) está no centro de suas vidas e propõe a eles encenar “Esperando Godot”, de Samuel Beckett.
IMPROVISO
A empreitada soa desproporcional à capacidade do grupo, considerando que um dos atores nem sequer é alfabetizado. Mas Étienne consegue envolvê-los na ideia de montar uma bela peça, estender os tempos de ensaio e até tirá-los da cadeia para marcar as cenas no ambiente de um verdadeiro teatro, quando a estreia se aproxima.
Com surpresas de última hora e um improviso que surpreende até o diretor, o “Godot” dos encarcerados arranca efusivos aplausos de seus primeiros espectadores. A notícia do “sucesso” da peça se espalha; os convites de teatros e festivais se acumulam, proporcionando ao grupo uma turnê.
A noite do triunfo a que o título se refere é a apresentação marcada para o Teatro Odéon, em Paris, uma espécie de glória com que Étienne nem sequer ousara sonhar. Os acontecimentos dessa noite, no entanto, irão obrigá-lo a rever sua ideia de triunfo, assim como a proximidade com seus “atores” o obrigou a reconsiderar seu conceito de liberdade.
DESCOBERTA
A necessidade de fazer pequenos trabalhos para assegurar o orçamento doméstico não é estranha ao diretor do filme, Emmanuel Courcol. “Tenho uma família e já estive nessa condição. Fiz publicidade, por exemplo”, comenta, em entrevista ao Estado de Minas.
Mas o que o seduziu na história real (ocorrida na Suécia), a partir da qual ele escreveu o roteiro de “A noite do triunfo”, é, segundo diz, a descoberta do “universo carcerário”, que ele desconhecia, e “ver que homens que se encontram condenados por fatos graves podem mudar, de certo modo, graças ao teatro, à cultura, a uma abertura para outra coisa além de seu mundo de delinquentes”. Em resumo, Courcol se encantou por uma demonstração “fascinante” da “potência” do teatro.
O interesse do diretor pela capacidade transformadora da arte fez com que ele optasse por se “apartar dos filmes de prisão muito duros e muito sombrios e também de um imaginário da prisão muito negativo”. É a razão pela qual o diretor e roteirista não se “detém de modo algum sobre o passado e os fatos que os conduziram à prisão”, diz Courcol.
“Quando um artista vai trabalhar com os detentos, não sabe por que eles foram condenados, porque isso não deve interferir na relação”, observa. Autêntica comédia dramática, “A noite do triunfo” alterna diversos momentos hilários com outros densos, mas nenhum deles envolve os crimes pregressos dos condenados.
Por se tratar de uma declaração filmada de amor ao teatro, Courcol procurou reunir atores que tivessem intimidade com o palco. “A abordagem (da atuação) é diferente quando se trata de subir num palco. É preciso aprender o texto, colocar-se em risco em cena e ter um espírito de trupe”, comenta. O “espírito de trupe” surgiu, em suas palavras, tanto no grupo que monta a peça no filme quanto na equipe mais estendida, para seu orgulho e alívio.
Kad Merad não era o ator que Courcol imaginou como seu protagonista, “mas, como frequentemente acontece, o ator que se impõe num papel é aquele que, retrospectivamente, se revela a melhor escolha”.
Ao lado de Merad, atuam alguns nomes da Comédie Française, que o próprio diretor caracteriza como a “aristocracia do teatro”. É o caso de Marina Hands, a diretora da prisão e autora da ideia de promover uma oficina teatral para os detentos.
O russo radicado na França Alexsandr Medvedev interpreta o detento que se torna assistente do diretor na preparação da montagem. Courcol afirma que, se tivesse que escalar hoje o elenco de “A noite do triunfo”, voltaria a trabalhar com Medvedev sem titubear.
O diretor se diz contrário à convocação de boicotes gerais a artistas russos, como forma de protesto à invasão da Ucrânia pela Rússia. “O que eu não suportaria seria trabalhar com alguém abertamente pró-Putin e pró-guerra, e isso definitivamente não é o caso de Medvedev”, afirma.
Ainda no território mais amplo do teatro político, Courcol conta ter apoiado a candidatura de Emmanuel Macron à reeleição e assinala que discorda da decisão dos abstencionistas, que se posicionaram com a recusa a ambos os candidatos na eleição de domingo passado.
“Eu escolho o menos pior. Prefiro ter discordâncias com um governo Macron a ter discordâncias com um governo (de extrema-direita) Marine Le Pen. Logo virão as eleições legislativas. Ainda estamos numa democracia. Vamos seguindo com o encaminhamento das questões.”
“A NOITE DO TRIUNFO”
(“Un triomphe”, França, 2020, 116min) Direção: Emmanuel Courcol. Com Kad Merad, Sofian Khammes, Wabinlé Nabié, Said Benchnafa, Pierre Lottin, Marina Hands. Em cartaz a partir desta quinta (28/4), no Minas Tênis Clube (Sala 1, 16h e 20h30)
Filme abriu o Festival de Cannes “da pandemia”
Concluído em 2020, “A noite do triunfo” foi o filme de abertura do Festival de Cannes daquele ano. Ocorre que, no ano da eclosão da pandemia do novo coronavírus, a mostra de cinema mais famosa do mundo “foi bem particular”, nas palavras do diretor Emmanuel Courcol.
A organização adiou o festival de seu tradicional mês de realização, maio, para o segundo semestre, à espera de condições sanitárias mais favoráveis, que não vieram. Para não cancelar definitivamente a edição 2020 de Cannes, foi feito “um minifestival com alguns filmes franceses”, conforme lembra o diretor.
Seu filme “efetivamente abriu o festival, numa sala com público pela metade, já que uma cadeira a cada duas tinha que ficar vazia”. No entanto, “a repercussão crítica foi muito boa”, ele diz.
COMÉDIA SOCIAL
Com as condições de filmagens “de volta ao normal” na França, Courcol seleciona atualmente o elenco para o seu próximo filme. Desta vez, ele fará “uma comédia social sobre dois irmãos que foram adotados na infância e não se conhecem. Quando adultos, eles se encontram. Um é um maestro de alto nível em Paris; outro é um músico amador numa fanfarra numa cidadezinha no Norte da França. São, portanto, dois universos sociais e musicais”.
Enquanto filmava “A noite do triunfo”, Courcol rodou também um documentário sobre uma iniciativa semelhante de oficina teatral que ocorria na penitenciária que serviu de cenário ao filme. O longa documental se chama “Boxear as palavras”, em referência aos dois temas da encenação que vinha sendo preparada – o boxe e a literatura.
O diretor tem a expectativa de que seu documentário chegue a uma plataforma de streaming para que possa ser visto por um público amplo e o considera como um bom “complemento” à narrativa ficcional de “A noite do triunfo”.
Por ora, no entanto, ele afirma que a prioridade é “fazer bons filmes para levar as pessoas de volta às salas de cinema”. (SA)