Em 1974, final dos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985), a mineira Maria Alcina interpretava, com fina ironia, “Como se não tivesse acontecido nada”. Em 2019, 45 anos mais tarde, o cantor e ator Marcelo Veronez pegou emprestada a canção de Miguel Paiva e Ricardo Guinsburg para nomear seu novo show. Naquele momento, ele diz, a ideia era lidar “com os absurdos que vivemos diariamente”.
Leia Mais
Rogério Delayon solta a voz em seu novo disco, 'Meu tempero'Otto manda recado para o 'mundo chapa quente' no disco 'Canicule sauvage''Clube da Esquina' e 'Acabou chorare' na lista dos melhores discos de 1972Belle and Sebastian lança 'A bit of previous' e clipe com fotos da UcrâniaMelliandro Galinari se volta para as próprias raízes no disco 'Do interior'Mineira Flávia Simão canta o single 'Cura' para OxumVinil de 'God save the queen', do Sex Pistols, 'saúda' o jubileu da rainhaDe volta aos palcos, ele apresenta nesta quinta-feira (5/5), no Teatro Sesiminas, o show “Como se não tivesse acontecido nada”.
HIBERNAÇÃO
Houve poucas apresentações do espetáculo em BH no ano de estreia e duas em São Paulo no final de 2021. O período de hibernação levou o artista a retrabalhar o show, ao lado do baixista Pedro Fonseca e do baterista Yuri Vellasco, que assinam a direção musical. Com “mais corpo”, o espetáculo mantém a veia crítica e irônica que permeia a trajetória de Veronez, que prefere chamá-lo de “show discurso”.
“O formato é um pouco parecido com os discos ao vivo da Maria Bethânia nos anos 1970, dirigidos pelo Fauzi Arap. Construímos temas e dramaturgias a partir das letras, que passam a se completar”, conta. A partir da ideia dos absurdos que as pessoas comuns enfrentam em seu cotidiano, Veronez perpassa a própria trajetória, de garoto saído do interior que veio pra cidade grande e se tornou artista.
“O show é dividido em blocos. O primeiro mostra a saída do interior, desse lugar absolutamente natural, de banho de rio”, conta Veronez. Nascido em BH, ele foi criado na zona rural de Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha.
“O segundo bloco é da chegada a uma cidade industrial. Normalmente, quem vem do interior não vai parar em apartamento chique da Zona Sul, vai para a periferia”, diz. Veronez viveu sua juventude em Contagem.
O terceiro e último bloco é como “um cabaré, o lugar discussão artística”, acrescenta ele, referindo-se à sua trajetória na música e no teatro em Belo Horizonte. É um show curto, de 50 minutos a uma hora, mas com muitas músicas – 15, ao todo.
FACÍNORA
“A minha luta está ligada à comunidade LGBTQIA+, mas ela é atravessada por outras, como a questão indígena, territorial, dos sem teto... Como unir as coisas todas em prol da ideia de um bem comum, de distribuição de renda, de uma política menos facínora? Como permitimos um Bolsonaro governar o Brasil? Para mim, a causa disso tudo vem da ideia da ditadura. Apesar de não ter vivido aquela época, acho que as questões contemporâneas vêm do período nefasto que o país viveu. O show trata de vários absurdos que estamos vivendo.”
Acompanhado por banda formada por Davi Fonseca (piano), Letícia Leal (viola caipira), Sarah Assis (acordeom) e Carô Rennó (voz), além dos já citados Fonseca e Vellasco, Veronez desfia “músicas pouco conhecidas de autores clássicos”. Une Roberto e Erasmo a Marku Ribas, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, João Bosco, Aldir Blanc, Jards Macalé e Chico Buarque, além de Zezé Motta, Cida Moreira, Maria Alice Vergueiro e Maria Alcina.
Há textos costurando tal narrativa, um deles da dramaturga Idylla Silmarovi. Neste show, Veronez lança a balada inédita “Hora de partir”, de sua parceira Milena Torres. A faixa vem sendo executada há algumas semanas na rádio Inconfidência. Nesta terça-feira (3/5), ela será lançada no YouTube. “Não vou trabalhar com streaming, pois sou contra a ideia da ‘uberização’ da música (nas plataformas de música digital).”
MULTIARTISTA
Prestes a completar 41 anos (em 30 de julho), Veronez vai caminhando para os 20 de carreira. Teatro (formou-se em 2003 no Teatro Universitário, da UFMG), dança (passou pelo Primeiro Ato Centro de Dança) e música (estudou na Anthonio Escola de Canto) sempre andaram lado a lado em sua trajetória.
Foi com um show que fez história no circuito independente de Belo Horizonte, “Não sou nenhum Roberto” (2008), que ele efetivamente entrou no universo musical. Com essa pesquisa sobre o repertório de Roberto Carlos, Veronez, ousada e respeitosamente, conferiu autoralidade a canções que fazem parte do imaginário popular. É muito mais interessante, vale dizer, ouvir Roberto Carlos sob o prisma de Veronez do que do próprio Rei, que se repete há décadas.
Foram 14 anos em cartaz. Ainda que tenha o espetáculo na manga, acha que é hora de parar. “Quando estreei, tinha 27 anos. Minha condição física é outra, minha forma de cantar também. É possível que faça de novo no Natal, pois é uma grande piada. Esse show, hoje, existe só em situações muito especiais.”
CASSIA E ROBERTO
Mas Veronez continua homenageando os ídolos, os dele e os de muitos de nós. Estreou em 10 de dezembro de 2021, data de aniversário de Cássia Eller, o show “Cássia, te amo”. É uma reverência mais intimista, sem a explosão de cores e corpos do espetáculo dedicado a Roberto. Acompanhado de três violões, interpreta o repertório da cantora, morta há 20 anos.
“Tenho feito apresentações para até 60 pessoas sentadas. Todas ficam no maior silêncio e concentração. As pessoas se emocionam muito, tem gente que chora no meio do show.” É um contraponto para a explosão em cena no show de Roberto.
“Gosto de ter três trabalhos no repertório. Tem o show de homenagem (de Roberto e o de Cássia), o de baile (para eventos e festas) e o de disco”, comenta. “Como se não tivesse acontecido nada” faz parte do último formato. É o primeiro espetáculo do gênero que Veronez montou desde “Narciso deu um grito” (2017), show de seu primeiro álbum.
“Gosto da ideia dos revezes. ‘Narciso’ era muito festivo, carnavalesco. ‘Como se não tivesse acontecido nada’ é mais baseado na ironia e no deboche”, conta ele, que sonha em lançar um álbum com o repertório que está levando para o palco.
“Esse trabalho é o mais bem resolvido dos 20 anos em que venho trabalhando com música e teatro. É um lugar onde consegui colocar mais a minha pesquisa, onde o encontro de música e teatro se dá de forma mais forte e natural”, continua.
COMPADECIDA
Não há pressa, no entanto, já que a carreira de Veronez se desdobra em várias. Além desse show, ele segue com o espetáculo “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, com o grupo Maria Cutia sob a direção de Gabriel Vilela. Há um mês, a montagem, de 2019, foi reapresentada em BH. Agora o grupo se prepara para levá-la a outras cidades.
“É um espetáculo que viaja muito. Entre junho de 2019 e fevereiro de 2020, quando paramos, foram 70 apresentações, apenas 12 delas em BH. É o maior clássico da dramaturgia popular, um espetáculo que amo. Imagina, tenho a possibilidade de fazer o Padre João e o capeta”, comenta.
Tais projetos são de Veronez em cena. Fora dela, ele segue como gestor da Gruta!, espaço cultural ao lado do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte, voltado para a cultura underground e LGBTQIA . Neste mês, começa a trabalhar na terceira edição do projeto Rampa, de treinamento cênico para artistas da cena musical. Ao lado de Marina Viana, ele vai montar o espetáculo “À tardinha no Ocidente” com os selecionados para essa versão do projeto.
MARCELO VERONEZ
Show “Como se não tivesse acontecido nada”. Nesta quinta-feira (5/5), às 21h, no Teatro Sesiminas – Rua Padre Marinho, 60, Santa Efigênia. Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada). À venda na plataforma sympla.com.br