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Estado de Minas ARTES CÊNICAS

Público fica 'cego' durante a peça 'Um outro olhar', que estreia em BH

Espectador abdica da visão e é estimulado a se valer do olfato, audição, tato e paladar para acompanhar, no escuro, a jornada de duas mulheres com câncer


04/05/2022 04:00 - atualizado 03/05/2022 23:48

Sete atores da Companhia de Teatro Cego, lado a lado, sorriem para a câmera usando óculos escuros, roupas pretas e bengalas
Atores com deficiência visual e dotados de visão plena formam a trupe, que convida à reflexão sobre solidariedade, empatia, medo e superação (foto: Yasmin Dib/divulgação)

A proposta é ir ao teatro para não ver o espetáculo em cena. Na verdade, não se trata exatamente de teatro, e o espaço que os atores ocupam é compartilhado com a plateia, tudo na mais absoluta escuridão.

Nova montagem do grupo Teatro Cego, cujo elenco traz atores com deficiência visual, a peça “Um outro olhar” estreia nesta quarta-feira (4/5), na Galeria Mari’Stella Tristão, no Palácio das Artes, onde fica em cartaz até o próximo domingo (8/5), com duas sessões diárias e entrada franca.

Criado em 2012 pelo ator e diretor Paulo Palado e seu irmão, o produtor Luiz Mel, o grupo Teatro Cego é formado por oito artistas: quatro com deficiência visual – Sara Bentes, Edgard Jacques, Luma Sanches e Giovanna Maira – e quatro com a visão plena – Ana Righi, Flávia Strongolli, Ian Noppeney e Paulo Palado. Responsáveis por efeitos, marcações e sonoplastia, Zan Martins, Rosana Antão e Felipe Herculano completam a trupe.

QUATRO SENTIDOS 

Palado explica que as produções da Teatro Cego convidam o público a abdicar da visão e compreender a trama por meio dos outros sentidos – olfato, paladar, tato e audição. Durante o espetáculo, sons, vozes, cheiros e sensações táteis as mais diversas chegam ao espectador vindos de locais diferentes, dando a ele impressão de estar inserido no ambiente cênico. Tais sensações são o caminho para a compreensão da trama, mesmo que ela ocorra completamente no escuro.

O formato não é o tradicional. A plateia é distribuída em cadeiras que intercalam cenários e objetos de cena. Há grande proximidade do público com os atores, que circulam entre as cadeiras.

Ao explicar a origem do Teatro Cego, Palado conta que ele e o irmão vinham trabalhando com projetos culturais ligados à filantropia e à inclusão até que, durante viagem a Córdoba, na Argentina, conheceram um grupo que lidava com apresentações cênicas na total ausência de luz.

“Tinha a ver com o trabalho que a gente já fazia, era uma coisa interessante de trazer para o Brasil. Começamos a produzir em 2010 e o primeiro espetáculo, ‘O grande viúvo’, adaptado de um texto de Nelson Rodrigues, estreou em 2012”, recorda.

O debute e as duas montagens seguintes – “Acorda, amor!”, de 2014, e “Clarear”, de 2018 – seguem os mesmos preceitos. “A pessoa entra no ambiente cênico onde estão os atores, sem nenhum ponto de luz. Ela não tem referência do espaço, se é pequeno ou grande, o que há nele. O elenco é sempre formado por atores cegos e atores que enxergam. Os textos são escritos de forma que a gente consiga evidenciar características sonoras, táteis e de aroma que ajudem a compreensão da trama”, explica Paulo Palado.

Quarta montagem do Teatro Cego, “Um outro olhar” conta a história da empregada doméstica e de sua patroa que passam por um tratamento de câncer.

Conforme a sinopse, a relação das duas “mostra as diferentes posturas e dificuldades que pessoas de classes sociais distantes têm diante desse desafio, ao mesmo tempo em que a compreensão das condições de cada uma delas faz nascer a amizade que se tornará a principal ferramenta de suas lutas”.

A trama fala sobre generosidade, empatia, amor, medo, superação, respeito e autoestima. Palado conta que o texto de “Um outro olhar” nasceu da aproximação do Teatro Cego com a ONG paulista Cabelegria, que recebe doações de cabelo, transformando-o em perucas doadas para pessoas que estão em tratamento quimioterápico ou têm patologias que causam queda capilar.

Sara Bentes, atriz, está de lado e sorri, com a mão no rosto
(foto: Facebook/Reprodução )

'Acho mais confortável atuar no escuro, porque é meu dia a dia. Não tenho de me preocupar com marcações, com a borda do palco ou com a localização do outro ator (...). Nesse tipo de situação, os atores que enxergam é que ficam meio perdidos'

Sara Bentes, atriz


CABELEGRIA A POSTOS

Assim como ocorreu em outras cidades, durante a temporada em Belo Horizonte o caminhão-estúdio da Cabelegria ficará estacionado em frente do Palácio das Artes realizando essa ação. Uma hora antes de cada sessão e ao término dela, o público é convidado a conhecer o caminhão e pode doar seu cabelo, com a opção de cortá-lo na hora. Há várias opções de perucas para serem doadas a pessoas que perderam o cabelo devido à quimioterapia.

Segundo Palado, as criações do Teatro Cego são intimamente ligadas a questões de inclusão e de saúde pública. No caso de “O grande viúvo”, foi firmada parceria com o Banco de Olhos de Sorocaba, que, paralelamente ao espetáculo, lançou campanha de doação de córnea.

“Na época, eles comentaram com a gente que essa ação deu mais retorno do que qualquer publicidade. a partir daquele momento, passamos a fazer campanhas de inclusão e de promoção da saúde”, diz.

Apesar de atender a um direcionamento, trata-se, acima de tudo, de teatro, ressalta Palado. “O texto fala da questão da doação de cabelo, mas sem ser coisa forçada. A dramaturgia de ‘Um outro olhar’ demandou pesquisa de quase dois anos, leituras, conversas e ensaios”, destaca.

O diretor enfatiza que a proposta da companhia não é oferecer laboratório de sensações – como jantares em que convivas são vendados com o intuito de experimentar cheiros, texturas e sabores.

“Nosso fundamento é teatral. Tem preparação cênica e preparação dos atores, só que, na hora de levar ao público, a gente suprime a visão e explora os outros sentidos com elementos cênicos. Usamos o aroma, por exemplo, como divisor de cena. Tem o quartinho da empregada. Quando a patroa entra, fala do cheiro forte de perfume, que a plateia sente na hora. Diz que vai ligar o ventilador para dissipar o cheiro, e o público sente o vento. Mais adiante, em outra cena no quarto da empregada, as pessoas vão identificá-lo pelo cheiro”, explica.

''Usamos o aroma como divisor de cena. Tem o quartinho da empregada. Quando a patroa entra, fala do cheiro forte de perfume, que a plateia sente na hora''

Paulo Palado, diretor


TRABALHO 

Integrante da companhia desde sua fundação, Sara Bentes, que tem deficiência visual, divide o palco com Flávia Strongolli e Ian Noppeney.

“Costumo dizer, primeiro, que é um trabalho como qualquer outro. Sou atriz profissional há mais tempo, desde antes de entrar para o Teatro Cego, e não é porque tenho uma deficiência que atuo de forma diferente. Estou lá com toda a responsabilidade que levo para qualquer outro trabalho”, diz.

A forma de atuar não muda, mas as condições, sim. “São dois diferenciais básicos. Um é que acho mais confortável atuar no escuro, porque é meu dia a dia. Não tenho de me preocupar com marcações, com a borda do palco ou com a localização do outro ator, o que acontece no teatro convencional. Nesse tipo de situação, os atores que enxergam é que ficam meio perdidos”, diz.

Outro diferencial, segundo a atriz, é que o público é chamado a uma incursão pelo universo dela. “Não se trata de mostrar para as pessoas como é a vida de uma pessoa cega. É muito diferente, pois ali o espectador fica cego por uma hora e depois volta a enxergar. Trata-se de um exercício duplo, de empatia e de outras percepções”, afirma.

Sara Bentes destaca que, nestes tempos de redes sociais transbordantes de fotos e vídeos, a visão é um sentido hipervalorizado. “As pessoas se esquecem de que existem outras formas de percepção. Quando vão a um espetáculo como esse, saem sensibilizadas”, aponta.

EFEITO 

O retorno do público é emocionante. “As pessoas ficam muito tocadas por essas duas questões que o espetáculo traz. No que diz respeito à escuridão, elas vêm me falar do que sentem, do que percebem, falam que conseguiram imaginar o cenário, o rosto dos personagens, o figurino. Isso é muito legal, mostra que os elementos de que a gente se vale funcionam, fazem efeito”, aponta.

Outra emoção vem de pessoas que estão passando ou já passaram por câncer ou tratamento quimioterápico. “Elas saem muito tocadas. E ainda tem a Cabelegria fazendo esse trabalho bonito de reforço da autoestima. A arte só faz sentido assim, quando o outro entende, sente, e a gente percebe que a troca aconteceu”, conclui.

“UM OUTRO OLHAR”

Peça da companhia Teatro Cego. Desta quarta-feira (4/5) até sábado (7/5), às 18h e às 20h. Domingo (8/5), às 17h e às 19h. Galeria Mari’Stella Tristão, no Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Entrada franca, com distribuição de ingressos uma hora antes de cada sessão, limitados a uma entrada por pessoa. Capacidade: 100 lugares. Informações: (31) 3236-7400




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