Jornal Estado de Minas

TELEVISÃO

A vida de Ziraldo de A a Z, em um documentário dirigido por sua filha


O garoto que admirava a Lua, gostava da chuva, amava gibis, sonhava com astronautas e queria conhecer o mundo é quem dá o pontapé inicial no filme “Ziraldo – Era uma vez um menino”, que focaliza a trajetória do célebre cartunista nascido em Caratinga (MG).



Não só dá o pontapé inicial como, de certa forma, conduz toda a narrativa. Após ser exibido na Mostra de Cinema de São Paulo e no Festival do Rio, o longa estreia na televisão, nesta quinta-feira (12/5), no canal Curta!.

O filme traz uma série de entrevistas realizadas ao longo de aproximadamente 40 anos, em que o próprio Ziraldo conta as histórias de sua vida, recheadas de casos marcantes e saborosos.

O tom confessional se justifica pelo fato de ser uma produção familiar. Sua filha, Fabrizia Alves Pinto, responde pela direção; outros dois filhos, Antonio Pinto e Daniela Thomas, cuidaram, respectivamente, da trilha sonora e da pré-produção; e o sobrinho, André Alves Pinto, trabalhou na montagem. Orbitaram esse núcleo diversas outras pessoas do convívio íntimo de Ziraldo.

Fabrizia conta que a ideia começou a tomar forma por um desejo da produtora Nina Luz e da roteirista Júlia de Abreu. “Partindo de uma produção da Marcela Sá e da Daniela (Thomas), Nina e Júlia queriam fazer um documentário com meu pai, que ia se chamar ‘A casa de Ziraldo’, mas ele teve o AVC (em setembro de 2018), o que inviabilizou levar adiante o que elas tinham em mente, que se relacionava com acompanhá-lo em seu dia a dia no estúdio”, relata.





A série documental “Elas no singular”, que Fabrizia dirigiu em 2018 para a HBO, acabou servindo de inspiração para uma readequação no projeto, por sugestão de Daniela. “Pensando no formato dessa série, ela achou que eu poderia fazer algo bacana sem necessariamente estar no estúdio ou no escritório com papai”, diz, apontando que o documentário “Elas no singular” foi todo feito em primeira pessoa, com a costura de depoimentos das personagens focalizadas.


Colagem de entrevistas

A bordo desse conceito do relato biográfico em primeira pessoa, Fabrizia se propôs a fazer uma colagem de várias entrevistas que Ziraldo deu ao longo da vida, acrescidas de uma que ela própria realizou com o pai, no final de 2019. “Achei que esse formato combinava, porque ele sempre foi um contador de histórias nato, um falastrão, sempre soltando alguma piada ou algum caso”, aponta.

Com a costura de todas essas entrevistas coletadas, ela acabou criando um monólogo que cobre um período de tempo que vai dos anos 1970 até 2019. Feita a seleção de entrevistas que sustenta esse grande relato autobiográfico, Fabrizia partiu para a pesquisa de materiais. 





Ela conta que, quando estava montando uma espécie de set de filmagens com toda a documentação e iconografia reunidas no estúdio do pai, no Rio de Janeiro, em 2020, foi surpreendida pela chegada da pandemia.

“Fiquei presa no Rio de Janeiro, trancada no estúdio dele. Por coincidência, o montador, que é meu primo, morava no andar de cima. Pudemos, assim, continuar o processo, comigo mergulhada no universo de papai, abduzida, abrindo as gavetas, vendo tudo o que ele tinha guardado. Estava com a mão na massa”, conta, acrescentando que contou com a colaboração do filho, da filha e do namorado da filha, que é fotógrafo, que também fizeram essa imersão no estúdio.

Além de Fabrizia Alves Pinto na direção, o documentário tem o envolvimento de Antonio Pinto e Daniela Thomas, também filhos do cartunista, aqui ao lado do pai, que abraça a neta Nina, no Rio de Janeiro, em 2003 (foto: Agência Estado)

Pesquisa extensa

Apesar do caráter familiar, Fabrizia e sua equipe tiveram que fazer uma extensa pesquisa fora do ambiente doméstico para reunir toda a documentação e as entrevistas que compõem o painel de “Ziraldo – Era uma vez um menino”. 





“A Marcela Sá, produtora, teve que correr atrás de muita coisa sozinha, porque num cenário de pandemia estava tudo parado, fechado, e a gente precisava de imagens do Rio de Janeiro ou outras que ele mencionava nas entrevistas e que não estavam guardadas nos arquivos caseiros”, aponta a diretora.

Entre as muitas passagens marcantes do filme está o relato de Ziraldo sobre o golpe militar de 1964 e como isso representou uma mudança em sua trajetória – ele fala em “segunda fase” de sua carreira.

Até aquele momento, ele estava em busca de um traço próprio para a criação das histórias em quadrinhos que, naturalmente, o levariam a trabalhar no exterior, conforme imaginava. Com efeito, o filme, até um dado momento, explicita a enorme gama de possibilidades de que o desenhista dispunha frente a uma prancheta.





“Ele fez publicidade, fez cartazes, fez várias coisas, mas queria ser um desenhista de histórias em quadrinhos e estava pesquisando esse universo”, diz Fabrizia. Ela observa, no entanto, que mesmo nessa “primeira fase” da trajetória do pai, ele já era um sujeito muito político.

“O Pererê, por exemplo, que é anterior ao golpe, é um personagem que está sempre querendo mudar o mundo, contestando as coisas, ou seja, isso já era da natureza de papai”, diz.


Origem dos personagens

Um dos trunfos do filme, a propósito, é revelar a origem de alguns dos personagens célebres de Ziraldo. Pererê surgiu de uma campanha pela valorização dos quadrinhos nacionais: “Não é combater o que está entrando (de fora). É dar força para a permanência dos valores daqui, criar condições para que a criança conheça melhor o seu país”, observa Ziraldo em uma das entrevistas compiladas.

Ressaltando que Ziraldo já dava como certa uma ida para os Estados Unidos, para trabalhar com HQs, Fabrizia conta que a chegada da ditadura militar o “forçou” a permanecer no país.

“Ele foi tomado por aquela coisa nacionalista de tentar salvar o Brasil daquela situação. Papai saiu das HQs e foi de forma mais incisiva para o cartum, uma coisa mais séria; foi fazer charge política, adotou um tom mais contundente. Numa das entrevistas incluídas no documentário ele diz que teve que desaprender a fazer o Pererê e, através do Jeremias, esse personagem triste, chegou numa outra estética”, aponta.





Ziraldo conta no filme que, com a instauração do regime militar, passou, nos momentos de ócio, quando não estava produzindo com uma finalidade específica, a desenhar involuntariamente personagens sisudos, soturnos, melancólicos, que, a partir dali, deram um rumo para o que viria a fazer em publicações como O Pasquim e o Jornal do Brasil.


O papel do Pasquim

O filme mostra como a criação de O Pasquim acabou por estreitar as relações de Ziraldo com algumas figuras proeminentes da cultura e da intelectualidade brasileiras – o que vale tanto para seus colegas de trabalho na Redação quanto para os muitos entrevistados que passaram pelas páginas do célebre jornal.

Antes mesmo do debute da publicação, Ziraldo já tinha Millôr Fernandes como uma espécie de farol. Diversos outros ilustres artistas e pensadores brasileiros vieram a integrar esse rol, segundo Fabrízia. 





“Em uma das entrevistas, aparece ao fundo uma foto com ele sentado ao lado de Zuenir Ventura e um balãozinho escrito ‘guru’. O Zuenir, assim como Millôr, foi muito presente na vida de papai. A turma toda do Pasquim, na verdade; o Jaguar, o Paulo Francis. Muita coisa ficou de fora. É impossível resumir a vida do meu pai em 90 minutos”, comenta a diretora.

Outro ponto que chama a atenção em “Ziraldo – Era uma vez um menino” são duas passagens em que ele fala, de maneira um tanto jocosa, da pecha de machista que desde sempre lhe foi imputada. Fabrizia conta que, toda vez que era perguntado a respeito desse traço de sua personalidade, ele respondia: “Pergunta para as minhas filhas”.


Machista de berço

“Ele nasceu nos anos 30, numa cidade do interior de Minas, paparicado por um monte de tias, então, sim, ele é completamente machista. Dá para ver isso até pelos personagens, como o Mineirinho, que, por si só, responde a essa questão”, atesta a diretora. “Mas ele sempre tentou não ser com a gente, tentou nos educar de forma que isso não fosse um problema para a gente. Mas queira ou não, sempre foi machista”, acrescenta.





Ela observa, no entanto, a capacidade do pai de reconhecer esse traço. “Vivemos em uma sociedade machista e racista que não se vê como tal. Meu pai tem essa coisa da busca, da Lua, do astronauta, que foi o primeiro personagem que ele criou, ainda na infância. Ele enxergava o Brasil de fora para dentro e de dentro para fora, sempre esteve à frente de seu tempo e sempre teve uma visão crítica do país, do mundo e de si mesmo”, sublinha.

A despeito dos tantos momentos distintos ao longo da trajetória e de uma galeria tão extensa de personagens que o pai legou, Fabrizia não se furta a apontar suas predileções: “No filme, tento abordar a maior parte dos personagens, porque papai é uma pessoa muito profícua, que criou muito, mas aquele por que eu sou realmente apaixonada – e isso é uma coisa muito particular – é o Flicts”, aponta.

“Ele representa um traço da personalidade do meu pai muito forte, que é essa eterna busca, essa curiosidade para afirmar o próprio traço, o pensamento ou o que ele quer transformar. Acho que o Flicts tem um impacto e um potencial grande de transformação para a vida das pessoas. Esse personagem fala de diversidade, fala que todo mundo tem um espaço no mundo e tem os mesmos direitos”, observa.

“ZIRALDO – ERA UMA VEZ UM MENINO”
Estreia na faixa “Quinta do pensamento”, do carnal Curta!, nesta quinta-feira (12/5), às 22h. O longa também pode ser visto gratuitamente durante 30 dias no Curtaon! - Clube de Documentários, bastando inserir o cupom ZIRALDO no site do canal Curta! O acesso será gratuito nesta quinta (12/5) e no domingo (15/5), às 22h