Quem passasse, em 2019, pela Avenida do Contorno, em um ponto próximo ao número 1.480, no Bairro Floresta, Região Leste de BH, provavelmente se depararia com as pinturas de Gerson Flores, artista ex-morador em situação de rua que habitava a região havia mais de 20 anos. Hoje, para ver seus quadros, será necessário se deslocar até Ouro Preto, onde eles se encontram expostos na Galeria de Arte Nello Nuno, da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop).
Leia Mais
Procura-se Gerson Flores, o artista de 'Principium'Veja datas da turnê que Milton Nascimento fará para se despedir do palcoCasa da Ópera recebe Festival de Popularização do Teatro em Ouro PretoPatrícia Melo é convidada do Sempre um Papo para falar sobre "Menos que um"Cinco filmes para maratonar no Dia Internacional Contra a HomofobiaO passado de Gerson Flores (não apenas o recente) é misterioso: provavelmente nascido em 1973, filho de descendentes de quilombolas, ele conta que costumava morar no Bairro Cachoeirinha, Região Noroeste de BH. Após a morte da mãe, entre 1999 e 2000, a situação se complicou e seus irmãos – com quem atualmente não tem nem deseja ter contato – lhe colocaram para fora de casa, segundo conta.
“Suas pinturas têm vários temas recorrentes, uma característica da arte espontânea que faz parte de um provável passado e da memória de seu inconsciente”, aponta Alexandre Mascarenhas. “São cenas de cidades no interior e casarões coloniais, mas também de BH e do Viaduto Santa Tereza, por onde andava e procurava material para suas pinturas.”
DÚVIDA
De acordo com o curador, os únicos registros sobre sua vida antes da situação de rua são orais, de quando Alexandre chegou a gravar vídeos e fazer anotações sobre suas conversas. “Não sabemos dizer o que é estória e o que é história. Ele comentou, uma vez, que gravou um vídeo com Gabriel O Pensador em seu Instagram, e outra, que chegou a jogar no Sparta Futebol Clube, um time da 3ª Divisão, do município de Campo Belo”, comenta Alexandre.Na tarde da última quinta-feira (12/5), Gerson Flores recebeu a reportagem do Estado de Minas na casa onde vive atualmente, em Belo Horizonte. Ele afirma que começou a pintar logo depois de ir para a rua, em um difícil momento, no qual era dependente químico e não tinha o que comer.
“Deus me libertou quando eu decidi buscar por mim mesmo”, afirma. “Nos mais de 20 anos em que eu vivi ali pelo Floresta, aprendi a dar muito valor à minha vida e à das pessoas que gostam de mim.”
Em abril de 2019, Gerson foi tema de duas reportagens do BHAZ, ambas assinadas pelo repórter Vitor Fernandes, nas quais a história e a situação de Gerson nas ruas eram descritas. Na época, Gerson costumava trocar seus quadros por alimentos. Com a repercussão das reportagens, ganhou reconhecimento local e conseguiu vender algumas de suas obras, bem como receber encomendas.
“O que ele falou (na reportagem: ‘Ninguém me vê, mas enxergam minhas pinturas’) foi muito forte”, rememora o jornalista. “Quando parei para ouvir o tudo que ele me disse foi um tapa na cara. A gente se identifica, infelizmente, com essa frase. Parei naquele momento ali apenas porque vi as pinturas, e isso dói.”
Gerson conta que foi vítima de diversos abusos enquanto se encontrava em situação de rua. “Pessoas já tentaram roubar meus quadros, me agredir com barra de ferro e chamar a polícia para me expulsar. Eu vivi através da fé”, diz.
O episódio da polícia que ele cita refere-se à reclamação da proprietária de um restaurante, que acionou a PM alegando que a presença de Gerson estava atrapalhando sua clientela.
As pinturas de Gerson retratam folclore, carnaval, tradições e temas religiosos. Segundo o curador Alexandre Mascarenhas, ele demonstra grande habilidade para trabalhar com misturas e contrastes de cores e o faz de forma muito rápida. Ao longo de muitos anos, Gerson pintou com objetos e ferramentas improvisados, lançando mão do que encontrava em seu cotidiano. Agora, recebe doações de latas de tinta, pincéis e telas.
TEMPO
“Até essa questão do tempo para ele é ambígua”, aponta Alexandre. “Ele não costuma assinar os meses nas pinturas, apenas os dias e os anos. É claro que tem noção do que são os meses e de como funcionam, mas isso não tem tanta importância para ele”.Uma das figuras mais recorrentes e misteriosas em suas obras é o Hongbak (a grafia está de acordo com o autor), que representa força, liderança, coragem e as virtudes do ser humano. Gerson diz se tratar de uma antiga divindade chinesa sobre a qual aprendeu em seus anos no Bairro Floresta.
O autor a representa como uma cabeça ornamentada por diamantes, muitas vezes sendo estrangulada por serpentes. “É o poder, representado pelos diamantes na cabeça do líder, sendo traído por sua própria ambição, que são as serpentes, figuras tão fortes quanto. Essa dicotomia é muito atual e ficou extremamente visível no momento político e econômico atual”, afirma Alexandre Mascarenhas.
O curador, quando começou a ter contato com a obra de Gerson, em 2019, criou um material para inscrever o artista nos editais da Faop. Atingindo o quarto lugar na seleção, a exposição foi marcada para 2020 e adiada devido à pandemia. Este ano, com o retorno da visitação pública, “Principium”, nome escolhido pelo curador, foi finalmente inaugurada.
O curador foi o representante do artista na exposição até o momento, já que Gerson não havia sido encontrado após o início da pandemia. Alexandre teve seu último contato com ele em 10 de outubro de 2019 e, após procurar em mais de 20 abrigos e casas de acolhimento, mas não conseguiu contato com o pintor.
PASTORAL
O que o curador não sabia é que Gerson saiu da situação de rua poucos meses após o início da pandemia. A Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte conseguiu arranjar uma casa para ele, onde permaneceu no desenrolar da pandemia. Quando perguntado na entrevista se tinha medo de andar pelas ruas, Gerson respondeu com um dolorido sim. “A gente acostuma com a rua, com toda a dificuldade e com todo o sofrimento”, diz.Depois de ter notícias da exposição de seus quadros em Ouro Preto e da boa acolhida à exposição, Gerson tomou a iniciativa de entrar em contato com o curador e com a Faop, por meio de conhecidos em comum.
“Estou ficando famoso!”, exclama, orgulhoso. Herbert Antunes, síndico do Condomínio Floresta, foi quem descobriu o paradeiro do artista. “Eu saí perguntando a todos que eram do convívio do Gerson aqui no Bairro Floresta. Encontrei uma ‘namorada’ dele que sabia onde ele estava e pedi a ela para lhe dizer que eu queria falar com ele. No dia seguinte, ele me procurou”, conta Herbert.
De partida para Ouro Preto para atender à exposição no domingo (22/5), Gerson afirma que seu sonho é viver na cidade histórica. Ele se diz cansado e desapontado com sua situação em BH e afirma querer recomeçar e tomar novos ares na antiga capital mineira, com a qual diz ter muita proximidade e se sentir em casa.
“Eu sofri muito aqui em BH. Essa é a minha história”, diz, apontando para uma de suas pinturas que retrata escravos em uma senzala. “Eu vou para Ouro Preto e vou levar o Pitoco comigo.”
Pitoco é o antigo cachorro que acompanhava Gerson e que, segundo o artista, já salvou sua vida de agressões e tentativas de assassinato várias vezes. O cãozinho, inclusive, é uma das razões pelas quais Gerson começou a pintar. Pitoco tinha o hábito de mastigar bisnagas de tinta coloridas que encontrava nas ruas, e Gerson, para evitar que ele se intoxicasse com o material, passou a usá-las fazendo pinturas. Quando passou a morar em sua atual residência, teve que entregar seu fiel companheiro à pastoral, já que o lugar não permite animais.
Orgulhoso da repercussão de suas pinturas, Gerson aponta o sentido da arte em sua vida. “Eu fico emocionado quando vejo as coisas que tirei do lixo se transformarem em arte. Cada vez mais, vou me aprofundar na minha arte. Não há sentido em parar. Quando a gente para, nossa mente fica vazia”, afirma.
* Estagiário sob a supervisão da editora Silvana Arantes