Um trágico desfile de miseráveis atravessa as 368 páginas de “Menos que um”, o novo livro de Patrícia Melo, que promove o lançamento da obra participando do Sempre um Papo, com transmissão on-line pelo canal do projeto no YouTube nesta terça-feira (17/5), às 19h.
Resultado de dois anos de trabalho, entre pesquisas e escrita, a obra reconstrói de forma ficcional, em uma narrativa caleidoscópica, pulverizada em muitas vozes, as inúmeras batalhas cotidianas de sobrevivência da população em situação de rua.
São camelôs, flanelinhas, desempregados, bêbados, ladrões, viciados e catadores, gente que tem como destino inevitável o fato de, por força das circunstâncias, ter que viver nas ruas. Patrícia não hesita em afirmar que o conteúdo do livro é o reflexo de uma realidade cada vez mais evidente, de pessoas que, paradoxalmente, estão condenadas à invisibilidade.
“Menos que um” flagra, segundo a autora, homens, mulheres e crianças que, por debaixo da sujeira, da fome, da dependência química, da violência, do medo e da solidão, ainda sonham, ou já sonharam um dia. “A gente é gente” ou “a gente não é lixo” são gritos que ecoam ao longo das páginas do livro, insistindo na humanidade de quem vive em condições subumanas, quase que à margem da vida.
"Somem-se os efeitos da pandemia a uma total e ostensiva desassistência do Estado. Muita gente perdeu o emprego, não conseguiu pagar aluguel, foi despejada e acabou na rua. O Brasil sabe quantas cabeças de boi tem, temos estatísticas para tudo, mas não se sabe o número de pessoas em situação de rua atualmente. Isso é muito triste, dá uma descrença no ser humano"
Patrícia Melo, escritora
Patrícia diz, sem rodeios ou floreios, que o mote para escrever “Menos que um” foi a situação atual do Brasil. “A urgência desse tema me chamou a atenção para o assunto e me fez ter vontade de escrever sobre isso. É um espelho do que vivemos hoje, um livro bastante calcado na realidade, sobretudo no que diz respeito às grandes cidades e à maneira como o Estado tem abandonado essa população em situação de rua”, aponta.
Ela considera que o atual momento sócio-político do Brasil é o mais agudo em termos de miséria, por um lado, e de indiferença, por outro. “É muito crítico, eu jamais vi uma situação semelhante nos meus 60 anos de vida. Acho que há uma completa degradação moral da classe política, algo sem precedentes. Jamais imaginei o Brasil como está hoje”, aponta.
Realidade próxima
Ao abordar as dramáticas – eventualmente terríveis – histórias que se cruzam de personagens como Douglas, Jéssica, Glenda, Dido e Zélia, a autora mergulha em um universo que, obviamente, não é o seu, mas está a um palmo de seu rosto. Patrícia nota que a realidade da população em situação de rua não é assim tão distante de si, por isso foi possível compor essas figuras e as situações que vivem.
“Hoje, saí para tomar café e entre a portaria do prédio onde eu moro, aqui em São Paulo, e a padaria, que são cinco quadras, eu vi, em cinco momentos diferentes no trajeto, pessoas dormindo nas ruas; em um dos casos, uma família inteira. Essa realidade está muito presente na nossa vida, e eu fico me perguntando: que sociedade é essa? Não sei em Belo Horizonte ou em outras capitais, mas aqui em São Paulo essa população só cresce. Parece um grande campo de refugiados, sem nenhuma assistência”, destaca.
O aumento desenfreado dessa miséria a céu aberto deve ser colocado na conta do atual governo federal, da pandemia e na forma como esse cenário reverbera na população como um todo, segundo Patrícia. “Somem-se os efeitos da pandemia a uma total e ostensiva desassistência do Estado. Muita gente perdeu o emprego, não conseguiu pagar aluguel, foi despejada e acabou na rua. O Brasil sabe quantas cabeças de boi tem, temos estatísticas para tudo, mas não se sabe o número de pessoas em situação de rua atualmente. Isso é muito triste, dá uma descrença no ser humano”, aponta.
Brasil aos pedaços
Com residência em Lugano, na Suíça, desde 2010, ela vem ao Brasil com frequência, diz que se mantém acompanhando a situação pelo noticiário e por meio de relatos de parentes e amigos, mas aterrissar e ver este cenário com os próprios olhos lhe pareceu aterrador.
“Nessa minha última volta, encontrei um Brasil aos pedaços. Vivo a realidade brasileira, é algo sempre presente nos meus romances, mas desta vez me senti terrivelmente entristecida. O Brasil foi destruído pelo atual governo”, diz.
“Vejo a indiferença com que essa situação é tratada, a sociedade parece estar anestesiada, não percebe o que está acontecendo, não se condói pelo semelhante e assim contribui para manter essa população em situação de rua na invisibilidade. É uma realidade dura de ser encarada, as pessoas se protegem, desviam o olhar para poder acreditar que é possível seguir em frente”, acrescenta.
Ao final do volume, nos agradecimentos, Patrícia observa que alguns livros são mais difíceis e mais dolorosos de ser escritos do que outros, e que este é o caso de “Menos que um”. Ela destaca que, pela temática da obra, que aborda a perda da liberdade imposta pela miséria, e por ter se colocado no vértice da atual tragédia brasileira, pensou, em diversos momentos, em desistir de levar o livro adiante.
Histórias dilacerantes
A escritora comenta a dificuldade de tratar dessa temática. “Você ouve histórias dilacerantes, e minha ideia era realmente fazer um cenário caleidoscópico dessa realidade, mostrar várias histórias, porque todo mundo que está na rua tem uma história trágica de desamparo. É normal você ter a sensação de que não vai conseguir dar uma forma para esse conteúdo. Como trabalhar essa matéria bruta tão cheia de dor? É uma dificuldade que passa não só por encarar essa tragédia brasileira de proporções gigantescas que está instaurada, mas também por uma questão de estilo, de estética da escrita”, ressalta.
Para a pesquisa que embasa “Menos que um”, ela contou com a colaboração da jornalista Emily Sasson Cohen, que também deu suporte para a feitura de seu livro anterior, “Mulheres empilhadas”, de 2019. Patrícia diz que, mesmo com as dificuldades impostas pela pandemia, Emily fez inúmeras entrevistas com militantes e ativistas pelos direitos humanos, visitou ocupações e projetos assistenciais, pesquisou a realidade de pessoas em situação de rua in loco, na imprensa e na esfera acadêmica.
“Eu estava fora do Brasil, e há pontos que demandam uma verificação in loco. Quando estou no país, eu mesma faço esse trabalho, de falar com as pessoas, as autoridades no assunto, ir a campo. Tem uma produção acadêmica grande sobre essa temática da população em situação de rua. A Emily me ajudou com isso de ir buscar informação, ir ao encontro dessa população e entender como essas pessoas se organizam, como conseguem sobreviver na rua”, salienta.
Literatura realista
Ela ressalta que “Menos que um” é um livro de ficção, mas que isso não o desobriga de estar ancorado na realidade. Patrícia diz que sua obra, no geral, sempre implicou uma pesquisa profunda sobre o tema a ser tratado ou o cenário a ser focalizado, fundamentalmente por se tratar de uma literatura realista.
A escritora recorre a um personagem do livro “História de Mayta”, de Mario Vargas Llosa, que, perguntado sobre o porquê da pesquisa que estava empreendendo acerca da vida do revolucionário peruano que dá título à obra, responde que é para poder mentir com autoridade.
“Você precisa ter o domínio da realidade para poder pensar em maneiras de contar sua história, que tem que soar crível para o leitor. Da forma como acontecem, as histórias que ‘Menos que um’ contém parecem absurdas, de tão inaceitáveis que são. São histórias de muita dor, muita perda, muito abandono; são, de fato, dilacerantes. Acho que sem conhecer um pouco essa realidade da população em situação de rua como me propus a conhecer, talvez esse livro não existisse. O livro é ficcional, mas ele olha para a realidade.”
Vida sem valor
Ao falar do drama dos personagens de “Menos que um”, ela evoca conceitos filosóficos do italiano Giorgio Agamben e do alemão Walter Benjamin (1892-1940). “Agamben fala em ‘vida nua’, que é mais ou menos a mesma coisa que Benjamin chamava de ‘mera vida’, ou seja, a vida sem valor, as vidas matáveis, a vida daqueles que são quase que escolhidos para morrer. Meu livro é inteiramente sobre essa questão”, aponta.
“Durante a pesquisa para escrever o livro, conforme fui vendo que essa é uma população que transita da rua para os albergues, as prisões, os orfanatos e de volta para a rua, uma população que vive numa determinada situação e circula por instituições que não dão conta dela, não conseguem amparar de forma digna, fui entendendo esses conceitos”, acrescenta.
O quadro dramático que “Menos que um” pinta parece apontar para um beco sem saída, um cenário sem solução, mas Patrícia diz, no entanto, que é possível e necessário alimentar esperanças de um futuro melhor.
“Claro que há saída. Temos uma eleição em outubro e temos um candidato sensacional, que é o Lula. Tenho esperança de que ele volte à Presidência e de que o país volte a ser gerido por políticos mais responsáveis, que promovam políticas públicas sólidas, com investimento em educação, em ciência; um governo mais atento às populações carentes. A gente já teve esse Brasil, então acredito que é possível, sim, uma mudança”, conclui.
“MENOS QUE UM”
Patrícia Melo
LeYa Brasil (368 págs.)
R$ 60 e R$ 42 (e-book)
Lançamento no Sempre um Papo desta terça-feira (17/5), às 19h, no canal do projeto no YouTube