Jornal Estado de Minas

CINEMA

Em cartaz, "A médium" e "Chamas da vingança" denotam interesse pelo terror


Uma passada de olhos na programação de cinema da cidade — que traz em destaque os filmes de suspense “A médium” e “Chamas da vingança” —, opções de leitura como “Últimas memórias de um morto-vivo”, o lançamento de “13 histórias sombrias” (de Edgar Allan Poe) em versão de audiolivro, o interesse internacional pela obra do inventor do personagem Zé do Caixão e mesmo a escolha de filme para a abertura da 75ª edição do Festival de Cannes — o tenebroso “Corte final!” —  atestam o momento de ebulição da busca por sustos a rodo por parte do público.





"A sensação de terror está em tudo. Não necessariamente instaurada na pandemia. Ela nos acompanha a todo tempo. Não digo isso na representação de um sofrimento constante, mas de modo mais cínico”, afirma a diretora argentina Agustina San Martín, que recentemente alcançou o público brasileiro com o longa “Como matar a besta”, exibido no mês passado no Cine UNA Belas Artes.
 
Veja trailer de "Chamas da vingança'':
 



“O terror está nas atitudes dos governos, está no terrorismo policial, na repressão com que o meio social trata determinadas pessoas. Está em tudo: pessoas nas ruas, sem casa ou comida”, acrescenta a argentina. Antes de ressaltar a harmonia entre frentes belas e as coisas horríveis, como destaca, Agustina centra a atenção no horror — "Ele integra a própria vida".
 
Inspirada em colegas como Pedro Costa, Carlos Reygadas, Nuri Bilge Ceylan e Alice Rohrwacher, Agustina — que, no filme, revela a trajetória de uma jovem que força entrosamento com familiares distantes — traz um clima de mistério, mas com tintas de horror e permanente transe. 





"A lente pela qual vemos o filme é realmente algo tenebrosa e próxima do terror. Vejo a violência como a do não dito, do silêncio e da quietude. Existe ainda a instância da violência, da espera. Quis construir tudo de modo muito sutil", sublinha a diretora.


Recém-exibido nos cinemas, ''Como matar a besta'', de Agustina San Martin, é exemplo da produção argentina (foto: Vitrine Filmes/Divulgação)

RELIGIÃO

Remexer situações em que há dose de religião opressiva é um elemento forte em “Como matar a besta”, a exemplo do que abastece a trama de “A médium”, do diretor Banjong Pisanthanakun, associado ao sucesso de 2004 “Espíritos — A morte está ao seu lado”.

 

A agonia toma conta da protagonista, empenhada em salvar a sobrinha de sessões de possessão em que se vê abalada por ostensivo cerco de demônios.


Norte de tendências para o cinema, o Festival de Cannes apostou no lançamento de “Corte final!”, comédia com zumbis assinada por Michael Hazanavicius (vencedor do Oscar com “O artista”). Um longa feito há cinco anos pelo japonês Shinichiro Ueda inspira “Corte final!”, que trata dos bastidores de um filme de terror, cujo set passa a ser atacado por zumbis.





Três anos depois de “Cemitério maldito”, uma releitura de obra do mestre do suspense Stephen King, mais um filme (já transposto para as telas nos anos 1980) alcançou agora as telas: “Chamas da vingança”, baseado em “A incendiária”. Com música do cineasta John Carpenter, autor de “Halloween”, o novo longa é estrelado pela jovem Ryan Kiera Armstrong (Charlie, no filme) e pelo astro Zac Efron (o pai, Andy).

Numa forma curiosa de aproximação com o público atual, o longa, que mostra uma menina com habilidade pirocinética, flerta com filmes da Marvel e afins. Experimentos com carga genética, ocultação de poderes e até declarações escancaradas de personagens ("Você, Charlie, é uma super-heroína da vida real" e "O poder da garota está só começando") acentuam a proximidade com títulos de mutantes. 

Mas o terror dá as caras: uma "coisa ruim" prenuncia a jornada de Charlie, que inclui visões de lágrimas de sangue, o bullying de ser chamada de aberração e a perseguição de uma entidade clandestina.





Estrelado pela jovem Ryan Kiera Armstrong, ''Chamas da vingança'' é baseado em ''A incendiária'' (foto: Universal Pictures)

ZÉ DO CAIXÃO

Sempre em alta no exterior, Coffin Joe — em bom português, Zé do Caixão (o icônico personagem de José Mojica Marins, morto em 2020) será tema de audiovisual produzido por Elijah Wood. Com vistas em exibições pelos Estados Unidos, Europa e Ásia, títulos como “À meia-noite levarei sua alma” e “O despertar da besta” têm sido remasterizados em 4k.

No Brasil, a mostra “O cinema sem medo de Mojica” marcou a recente reabertura da Cinemateca Brasileira, ocasião em que foram projetados o média-metragem “A praga” (1980-2007) e “A última praga de Mojica” (2021), sobre o processo de finalização de um material estacionado na produção e que foi retrabalhado pelo diretor Eugenio Puppo, cineasta que respondeu por mais de 20 mostras no país, entre as quais “José Mojica Marins — 50 anos de carreira”.

"A conclusão de ‘A praga’ foi resultado de um processo de muitas décadas e sua recuperação se deu em 2007, quando exibido em duas sessões para convidados", ressalta Puppo. Quando Mojica morreu, o diretor Eugenio Puppo decidiu aprimorar a versão de “A praga”, em alta definição, e seu relançamento casa com a exibição de um curta em torno do processo de recuperação. 





"Tudo dialoga com a própria história de esquecimento, precariedade e abandono do cinema brasileiro. Mojica é um gigante de nosso cinema, um gênio que flertou com o horror, faroeste, policial e erótico. Ele trabalhou por muitos anos para moldar seu estilo, e fez grandes experimentos com a linguagem narrativa, criando cenas surreais, usando posições e movimentos de câmera incomuns", afirma Puppo.
 
Veja trailer de "A praga":
 

 

“A praga” foi exibido em Sitges (Espanha), o maior festival de cinema fantástico do mundo, em 2021, gerando aplausos e elogios por sua autenticidade. "O próprio Mojica filmou as cenas necessárias para concluir a história, assim como participou como narrador, seguindo moldes de duas outras versões da obra: em 1967, transformada em episódio da série de tevê, e em 1969 transferida para os quadrinhos", conforme conta Puppo. 

"Mojica criou personagens muito autênticos da realidade brasileira. Foi um dos maiores cronistas das classes inferiores, retratando-as de modo visceral, contundente, agressivo. Seus personagens são movidos por instintos muito básicos, como o sexo, a violência e o recalque", comenta o diretor.





Morto-vivo narra romance do escritor mineiro Diego Rates (foto: Acervo pessoal)
“Foi o medo que manteve nossa espécie viva”

Estruturas narrativas utilizadas no cinema facilitam a conexão quando o alvo é o leitor, ressalta Diego Rates, de 23 anos, autor do livro “Últimas memórias de um morto-vivo”. Entre regras, Diego conta do prazer da ruptura e de buscar uma renovação. "Os filmes mais revolucionários fizeram isso e venho fazendo isso também em minha escrita, pegando inspiração em filmes que são considerados subversivos", aponta.

Nascido em Belo Horizonte, Diego tem admiração por Machado de Assis, em especial “Memórias póstumas de Brás Cubas”, mas não perde de vista “Guerra Mundial Z”, que mescla falso jornalismo e relatos do apocalipse zumbi. 

"Esse universo pode ter uma abordagem bem diferente. No livro, é um dos mortos-vivos quem conta a história. Através do seu ponto de vista, somos levados por uma trama tragicômica mostrando os impactos de teores sociais e ambientais". De olho naqueles "desacostumados com a leitura", o autor defende uma ação de vanguarda.





Para ele, o que move o interesse das pessoas pelo terror é o fato de que “as pessoas gostam de ler experiências que elas nunca viveram. No âmbito de terror, esperam nunca viver aquilo que leem. A sensação do medo, do arrepio na espinha, tudo isso vem de tempos ancestrais”, pontua. 

“Em relação aos efeitos fisiológicos, ele faz nos sentirmos mais vivos, faz o sangue correr mais rápido, a pupila dilatar. Foi o medo que manteve nossa espécie viva até hoje e esse é o principal motivo pelo qual acredito que somos tão atraídos para esse gênero, assim como somos atraídos por parques de diversão com brinquedos assustadores.”

O escritor observa também que “o ponto de vista de uma história sempre é fundamental para construir o efeito do medo. Um padrão que percebi em histórias do gênero dos mortos-vivos é que eles raramente são o elemento mais assustador. Quem nós realmente tememos são os vivos”. 

A explicação para isso, segundo ele, reside em que “os mortos não têm motivações. São retratados como irracionais, movidos apenas pelo desejo insaciável de se alimentar. Eu os vejo como uma força da natureza. Eles fazem o papel da seleção natural”.