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Estado de Minas LITERATURA

Mary Del Priore descreve triângulo para abordar a Independência do Brasil

Historiadora lança o livro "A viajante inglesa, o senhor dos mares e o imperador na Independência do Brasil"


29/05/2022 04:00 - atualizado 29/05/2022 09:03

Historiadora Mary del Priore olha para a câmera, com a mão no queixo
A historiadora Mary Del Priore afirma que é preciso refletir sobre o quanto as mulheres guardam dos costumes das antepassadas (foto: Karen Louise/Divulgação)


“Não foi um berro em São Paulo que decidiu a Independência do Brasil”, afirma a historiadora e escritora Mary Del Priore. Por ocasião do bicentenário do “Grito do Ipiranga” proferido por D. Pedro I, a autora reuniu três personagens à primeira vista dissonantes para dar conta de uma história que trata de independências, no plural.

“A viajante inglesa, o senhor dos mares e o imperador na Independência do Brasil” (editora Vestígio), novo título (o de número 53) da autora, acompanha e alinhava as trajetórias de Maria Graham (1785-1842), Thomas Cochrane (1775-1860) e D. Pedro I (1798-1834). São dois ingleses e um português que conviveram em um tumultuado país recém-independente.

Filha de um oficial da Marinha, Maria Graham viajou muito – chegou a acompanhar o pai às Índias – até aportar no Chile, ao lado do marido, Thomas Graham, comandante de um navio-escola. Viajou com a função de dar aulas para os futuros oficiais. 

Enviuvou naquele país, onde conheceu o célebre oficial da Marinha Thomas Cochrane. De família aristocrata, foi tornado herói para depois cair em desgraça em seu país. Chegou ao Chile pós-independência para comandar a Marinha.  

“São dois ingleses extremamente interessantes que escreviam sempre. Além disso, eles trazem um olhar da Inglaterra, esse império que está tomando conta do mundo, que olhava esses ‘Brasis’ – pois os ingleses só chamavam o Brasil com a letra esse no final”, ela diz. 

“Tudo que é bom, é inglês. Tudo que é ruim, é o resto. A mobília das casas, as gravuras, tudo era inglês. Já um ano depois da Independência há um antilusitanismo fortíssimo que vai reverberar nas atitudes de D. Pedro. Mas os protagonistas de fundo são os poderosos ingleses de quem se depende para tudo. A arrogância colocava os ingleses isolados, isentos de problemas sociais”, conta Mary.

PRONTA 

Para dar conta desta relação, a autora vai percorrendo as biografias dos três personagens, ora em separado, ora juntos. Mas o protagonismo fica por conta de Maria Graham, que passou três temporadas no Brasil, entre 1821 e 1825, e foi muito próxima de D. Leopoldina – atuou como tutora dos filhos da princesa e D. Pedro. 

“Trabalho com história de mulheres e esta vai chegar ‘pronta’ ao Brasil. Era culta, com livros publicados, casada. Só que, ao cabo de um ano, ficou abandonada no Chile, onde vai encontrar Lord Cochrane.”

Não dá para cravar, mas os indícios são grandes de que os dois tiveram uma relação. Cochrane, aqui fazendo um parêntesis, tinha mulher e filhos na Inglaterra. Kitty era belíssima, mas de família simples e muito mais jovem que o marido (tinha apenas 16 anos quando fugiu para se casar com ele, à revelia da própria família).

“Estamos em pleno romantismo, então um olhar e um toque na mão consolidavam uma relação. Não precisava ir para a cama. Pelo menos da parte dela, houve um envolvimento muito grande que ele, machistamente, vai descartar. Quando sai do Brasil, ele pede a Maria Graham para nem falar o nome dele, o que fica como um indicativo de que ele queria apagar esta relação”, aponta.

Retrato da inglesa Maria Graham, usando vestido preto e turbante
A inglesa Maria Graham foi testemunha de momentos decisivos da história do Brasil (foto: Augustus Callcott/Reprodução)


Cochrane, de acordo com a autora, teria usado Maria Graham na Confederação do Equador (movimento revolucionário iniciado em Pernambuco em 1824), em que ele teve papel de destaque). “E ela também resolve que poderia voltar para a Corte como grande heroína da Confederação. A coisa não funciona, e a questão é resolvida com sangue e prisões”, descreve Mary.

A autora partiu dos diários de Maria Graham e de Thomas Cochrane para dar início à narrativa. “Os diários dela são mais como livros de viagem, em que acaba misturando sentimentos íntimos. Houve um momento em que ficou extremamente deprimida, pois circulavam rumores da relação dela com Graham. Também vão para as páginas do diário sua intimidade com Leopoldina. Eram duas estrangeiras no palácio, então há este aspecto de Maria aparecer como testemunha de outra mulher que sofria como ela”, comenta a historiadora.

TESTEMUNHOS 

Já de Cochrane, diz ela, além dos diários, outra fonte relevante foram os testemunhos do padre que viajou com ele no navio Pedro I. “O frei Manoel da Paixão, aliás, se apaixona por Thomas Cochrane. Escreve dizendo como ele é corajoso, genial. É interessante como as pessoas se envolvem por ele, inclusive os marinheiros.”

Sobre o imperador, os relatos vêm dos outros. “Muitos são bastante críticos, falando do inglês macarrônico de D. Pedro, por exemplo. Era Leopoldina quem fazia tudo. E há os estudos feitos a partir de panfletos e jornais que circularam na época. A ligação de D. Pedro com a senhora Castro, depois Marquesa de Santos, fala muito contra ele, seu absolutismo. É interessante ver o Rio de Janeiro fervilhando de ódio contra um imperador que eles mesmos outorgaram, se preparando para o chute que ele vai levar em 1831.”

Ainda que já tenha se debruçado sobre inúmeros personagens da história brasileira, Mary nunca havia escrito sobre Maria Graham e Thomas Cochrane. Para a autora, dar corporalidade à história é essencial para aproximar o público do passado.

“Quero mostrar que essas pessoas estão vivas. Entrei na faculdade tarde, já era mãe de três filhos. Antes disso, trabalhei no meio antiquário de São Paulo. Então a ideia da fisicalidade do cenário, a descrição dos lugares vem disso. Os personagens têm que ser também uma janela do que estou vendo.”

RETRATOS 

Para ela, o olhar de quem estava de fora também é essencial para criar os retratos de personagens históricos, tanto tempo depois. “Os estrangeiros que chegaram naquela época ao Brasil já nos viram como a sociedade mestiça que somos. Todos diziam, desde o final do século 18, que era gente de todas as caras e havia essa observação sobre mobilidade social.”

Para Mary, escrever sobre mulheres que vieram antes é necessário. “Apesar da revolução sexual, da pílula, das mulheres estarem no mundo do trabalho, da política, enfim, de a gente estar conquistando tanta coisa, a mulher ainda tem muito de suas antepassadas. Precisamos refletir sobre isto. Existe ainda a expectativa do príncipe encantado, como foi no caso da Maria Graham, e do lar ideal, como foi com a Leopoldina.”

Finda esta jornada, a autora agora está em meio à pesquisa sobre a Princesa Isabel no exílio. O livro está previsto para 2023.

Capa do livro A viajante inglesa traz foto maior de Maria Graham, e menores de D. Pedro I e de Thomas Cochrane. Ao fundo vê-se ilustração da Baía de Guanabara
“A VIAJANTE INGLESA, O SENHOR DOS MARES E O IMPERADOR NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL”
. De Mary Del Priore
. Vestígio (224 págs.)
. R$ 59,80 (livro) e R$ 41,90 (e-book).


TRECHO

“A 18 de julho de 1824, Maria embarcou num brigue de guerra em Falmouth. Destino: o palácio de São Cristóvão no Rio de Janeiro. Voltava após onze meses nos quais se dedicou a reunir material didático para a princesa Maria da Glória, de quem se ocuparia como governanta. Um mês depois, entrava nas águas turquesas do litoral de Recife, parada obrigatória. Ao longe, avistou um navio de guerra. Nada mais, nada menos do que o Pedro I. Pareceu-lhe uma fatalidade encontrar-se novamente na cidade sitiada. Um guarda-marinha veio a bordo e ela prontamente escreveu a Thomas. Antes mesmo de obter resposta, entrou num bote e foi ao seu encontro. Exultou ao ‘vê-lo deixar o navio no intuito de me buscar’. Jantaram juntos. ‘Tive uma conversa agradável e proveitosa com Lord Cochrane. Vi os jornais. A imperatriz teve outro filho: se é homem ou mulher, não sei’ – anotou no diário, com aparente frieza. Onze meses não eram onze dias. A magia dos passeios na praia tinha desaparecido.”


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