Jornal Estado de Minas

LUTO NAS ARTES

"Ainda me emociono", dizia Milton Gonçalves, sobre primeiro aplauso de pé


O pioneirismo e a incansável luta por mais e melhores espaços para os atores negros na produção audiovisual brasileira são as principais marcas que o ator Milton Gonçalves deixa como legado. Um dos grandes nomes da teledramaturgia no país, tendo feito mais de 40 novelas só na Rede Globo, ele morreu nesta segunda-feira (30/5), em casa, aos 88 anos, em decorrência de problemas de saúde que vinha enfrentando desde que teve um AVC, em fevereiro de 2020, segundo a família.





Contratado pela TV Globo em 1965, ele formou, juntamente com Célia Biar e Milton Carneiro, o primeiro elenco de atores da emissora, onde chegou a convite do ator e diretor Otávio Graça Mello, de quem fora companheiro de set no filme “Grande sertão” (1965), dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira. Desde então, conforme lembra seu filho, o também ator Maurício Gonçalves, lutou pelo reconhecimento do trabalho dos negros e venceu muitos preconceitos.

Em 2015, quando foi o homenageado do CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, Milton Gonçalves falou, em entrevista ao Estado de Minas, sobre essa questão. Logo na abertura do evento, dividindo o palco com o também ator Antônio Pitanga, o diretor Joel Zito Araújo e a então presidente da Fundação Palmares Cida Abreu, ele defendeu que conquistar o papel de protagonista é um direito de todos os atores negros.

O filme escolhido para a abertura daquela que foi a 10ª edição do festival foi "A rainha diaba" (1974), de Antônio Carlos Fontoura, com roteiro de Plínio Marcos, que Milton protagoniza no papel de um fora da lei negro e homossexual. Na ocasião, ele destacou que o cinema sempre teve um papel importante em sua vida, lhe trazia a vontade de ser herói.




SONHO 

“O cinema era o sonho de ser amado, respeitado, homenageado pelo público. Levei tempo para entender por que não havia heróis negros, por que éramos tratados como bobos”, disse. Sobre o trabalho em “A rainha diaba”, que lhe rendeu vários prêmios, ele falou ao Estado de Minas sobre o sentimento de ter atingido um lugar de destaque, que poderia abrir caminhos para si e para outros atores negros.

“Imagine alguém como eu, vindo de Monte Santo de Minas, que teve uma vida difícil, estar no Rio de Janeiro ganhando prêmios importantes. Quando subi ao palco, o público se levantou e me aplaudiu de pé. Até hoje fico emocionado ao lembrar”, conta. “Queria ter feito mais filmes, mas não existiam personagens negros como protagonistas. O que havia eram participações ou o folclore, o que é complicado”, ressaltou o ator.

“Ainda faltam filmes que nos mostrem como partícipes da civilização brasileira. Somos metade da população. Temos de estar em todas as manifestações”, disse Milton, apontando a falta de personagens bons, profundos, de respeito. 





“Quando eu era jovem, a situação era ainda pior. Não víamos o brasileiro negro nos filmes. Ainda tínhamos de brigar para ser respeitados como cidadãos”, destacou. Milton chegou a ser barrado em um clube e ouviu de um policial que o abordou que a Avenida Paulista não era lugar para negro passear. Ele disse, ainda, que sentia ter cumprido sua missão de abrir caminho. “Agora, outros precisam se sentir partícipes dessa história.”

Milton com o ator e o cineasta Joel Zito Araújo, em Tiradentes, em 2005, quando participaram da Mostra de Cinema com o longa-metragem "As filhas do vento" (foto: Emmanuel Pinheiro/EM/D.A.Press - 27/1/2005)

ESTREIA PROFISSIONAL 

Nascido em 9 de dezembro de 1933, em Monte Santo (MG), Milton Gonçalves se mudou com a família, ainda criança, para São Paulo, onde foi aprendiz de sapateiro, de alfaiate e de gráfico. Nesse período, fez teatro infantil e amador. Sua estreia profissional ocorreu em 1957, no Arena, na peça “Ratos e homens”, de John Steinbeck.

O cinema sempre foi uma paixão desde a infância, mas foi também por meio da teledramaturgia que o ator conquistou popularidade e pôde alçar voos mais altos. Lembrado por personagens marcantes na televisão brasileira, como o Zelão das Asas, de “O bem amado” (1973), o médico Percival, de “Pecado capital” (1975), e o Pai José, de “Sinhá Moça” (1986), ele também teve uma participação de destaque no infantil “Vila Sésamo” (1972), onde deu vida ao Professor Leão.





Milton participou, ainda, de outras produções, como “Roque Santeiro” (1985), “Tenda dos milagres” (1985), “As noivas de Copacabana” (1992), “Agosto” (1993) e “Chiquinha Gonzaga” (1999), além de ter atuado em minisséries de sucesso e programas humorísticos, como a primeira versão de “A grande família” (1972).

Outros trabalhos de destaque do ator foram as séries “Carga pesada” (1979) e “Caso verdade” (1982-1986). Já como diretor, sua primeira experiência aconteceu na novela “Irmãos coragem” (1970), de Janete Clair. Ele também dirigiu os primeiros capítulos das novelas “Selva de pedra” (1972) e “Escrava Isaura” (1976), uma das mais vistas no mundo.

INDICAÇÃO AO EMMY 

Tendo participado da “Sinhá moça” original, em 1986, sua atuação como Pai José na segunda versão da novela lhe valeu a indicação como melhor ator no Emmy Internacional. Na cerimônia, apresentou o prêmio de melhor programa infantojuvenil ao lado da atriz norte-americana Susan Sarandon. Milton foi o primeiro brasileiro a apresentar o evento. A última novela de que ele participou na TV Globo foi “O tempo não para” (2018), em que interpretou o catador de materiais recicláveis Eliseu.





Seus últimos trabalhos na emissora foram em 2019, na minissérie “Se eu fechar os olhos agora”, inspirada na obra homônima de Edney Silvestre, e no especial de Natal “Juntos a magia acontece”, como o aposentado Orlando, que com a ajuda da neta se tornava Papai Noel. O programa ganhou o Leão de Ouro na categoria entretenimento, no Festival Internacional de Criatividade, em Cannes. Atualmente, Milton pode ser visto no ar com a reprise de “A favorita” no “Vale a pena ver de novo”.

Sua intensa atuação na televisão nunca o afastou do cinema. Ele estrelou mais de 50 filmes, como “Cinco vezes favela” (1962), dos diretores Marcos Farias, Miguel Borges, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues; “Gimba, presidente dos Valentes” (1963), de Flávio Rangel; “O que é isso, companheiro?” (1997), de Bruno Barreto; “O beijo da mulher aranha” (1985) e “Carandiru” (2003), ambos de Héctor Babenco.

MILITÂNCIA POLÍTICA 

O ator também teve importante militância política. Simpatizante do Partido Comunista Brasileiro na juventude, chegou a se candidatar ao governo do Rio de Janeiro em 1994, pelo PMDB, mas, ao final do primeiro turno, teve somente pouco mais de 4% dos votos. Ele, no entanto, ocupou outros cargos públicos, como a Superintendência Regional da RadioBrás Setor Sul, entre 1985 e 1986; foi membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, do Conselho de Artes do Paço Imperial do Rio de Janeiro e do Conselho Cultural da Fundação Palmares.





Milton Gonçalves não conseguiu viver o bastante para ver um de seus sonhos realizados: o Brasil sendo comandado por um presidente negro. Em entrevista que concedeu em 2019, ele contou que ter um governante negro no poder seria uma das coisas que o deixariam mais realizado na vida.

“O que me falta neste momento no meu Brasil, o que me deixaria alegre, é que nós tivéssemos um presidente negro, porque nós somos um percentual grande neste país. No dia em que nós tivermos um presidente negro, aí eu vou dizer: nós batalhamos. Os Estados Unidos tiveram um presidente negro e nós não temos? Isso me incomoda. Não interessa se vão ficar zangados, se vão dizer que sou racista. Quero é que nosso povo brasileiro, que é de índios, negros, orientais, estejamos todos juntos”, disse o ator na época em referência a Barack Obama, presidente dos EUA entre 2009 e 2017.

PRESIDENTE NA FICÇÃO 

Pelo menos em sua carreira, Milton conseguiu ver seu sonho acontecendo. Em 2010, o ator deu vida a Ernesto Dantas, presidente do Brasil no longa “Segurança nacional”. Sua experiência no universo da política também o ajudou a compor o personagem Romildo Rossi, o político corrupto de “A favorita” (2008), de João Emanuel Carneiro.





Em 2019, o ator se viu em meio a uma polêmica quando processou o também ator Paulo Betti por racismo, diante de uma fala considerada “infeliz” e que fazia “distinção entre brancos e negros” durante a disputa pela presidência do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculo de Diversões do Estado do Rio de Janeiro (Sated-RJ), em junho daquele mesmo ano. A ação acabou sendo arquivada e encerrada após pedido dos próprios advogados de Milton.

Em comunicado, sua filha, Alda Gonçalves, escreveu: “Agradecemos ao público que gostava dele o carinho e a força positiva que todo mundo teve com a gente. Que todo mundo tenha a certeza absoluta de que ele foi em paz, com muita tranquilidade, ao lado da família. Foi encontrar minha mãe e fazer muita arte lá em cima”. O velório ocorrerá nesta terça-feira (31/5) no Theatro Municipal, no Centro do Rio de Janeiro.