O segundo ato do Museu de Arte Negra, idealizado por Abdias do Nascimento (1914-2011), traz o verde de Oxóssi, orixá das plantas sagradas, para evocar a perspectiva pan-africanista das artes. Intitulado “Dramas para negros e prólogos para brancos”, o projeto leva para a Galeria da Mata, em Inhotim, o Teatro Experimental do Negro (TEN). Fotos, textos e outros materiais resgatam a história da iniciativa disruptiva que marcou a luta antirracista no Brasil e o campo das artes.
Inaugurada no sábado (28/5), a exposição “Segundo ato de Abdias do Nascimento e o Museu de Arte Negra” segue em cartaz até 16 de outubro, em Brumadinho.
A parceria entre Inhotim e o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) permite que o museu concebido por Abdias do Nascimento tenha um espaço físico para exibir obras que ele produziu ou adquiriu ao longo da vida.
MODERNISMO"BRANCO"
A exposição inaugural do Museu de Arte Negra ocorreu em 1968, no MIS – Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, marcando os 18 anos da iniciativa criada durante congresso promovido pelo TEN. Ele resgata a perspectiva africana na base do pensamento modernista brasileiro, que embora propusesse ruptura com o academicismo e criações europeias, não incorporou à discussão a contribuição das matrizes africanas para as artes.
O primeiro ato em Inhotim foi guiado pela relação entre Abdias e o artista plástico Tunga (1952-2016), cujas criações têm destaque em Brumadinho. O segundo ato recebe pinturas de Abdias e obras de artistas com os quais ele dialoga – Anna Bella Geiger, Heitor dos Prazeres, Iara Rosa, José Heitor da Silva, Sebastião Januário, Octávio Araújo e Yêdamaria.
Desta vez, Inhotim exibe trabalhos que participaram do concurso Cristo Negro, realizado em 1955, cuja exposição foi realizada em 1968.
O novo conjunto permite uma imersão no pensamento do pan-africanista Abdias do Nascimento, que foi poeta, escritor, dramaturgo, curador, artista plástico, professor universitário e parlamentar. As obras compreendem o período de 1944 a 1968, ano em que ele se exilou nos Estados Unidos devido à ditadura militar no Brasil. No ano de 1968, começou a pintar.
O roteiro da exposição termina com a despedida a Abdias rumo aos EUA, logo depois de pintar suas primeiras obras no Rio de Janeiro. Outro destaque do acervo é o casaco de tapeçaria presenteado pela artista e escritora Iara Rosa para que o carioca pudesse se agasalhar no inverno estadunidense.
INSPIRAÇÃO DOS ORIXÁS
O verde de Oxóssi soma-se ao amarelo-ouro de Oxum, orixá que marcou a expografia do primeiro ato em Inhotim. Aliás, os orixás orientam a exposição não do ponto de vista religioso, mas da perspectiva de conceber a arte a partir de visada afrocentrada.
“O Museu de Arte Negra é um momento de interlocução, consolidação daquilo que é a expressão negra da ancestralidade e do protagonismo da pessoa negra na arte e na epistemologia de uma cultura brasileira, que, na verdade, pouco reconheceu historicamente esse protagonismo”, afirma Elisa Larkin Nascimento, escritora, curadora e diretora do Ipeafro.
Durante entrevista coletiva, Elisa destacou que o Teatro Experimental do Negro trouxe para as artes a afirmação das matrizes da cultura africana na luta antirracista. Ela ressaltou que Abdias propunha “realizar a verdadeira abolição da escravatura no Brasil”, já que a primeira foi incompleta no que tange à garantia de direitos dos negros.
A convite de entidades do movimento negro estadunidense, Abdias do Nascimento foi para os Estados Unidos em 1968. No entanto, com a decretação do Ato Institucional nº5 (AI-5) e o endurecimento do regime militar no Brasil, não pôde voltar ao país. Companheira de Abdias, Elisa Larkin ressalta que o AI-5 impediu o artista de dar sequência à criação de uma sede física para o museu.
O protagonismo negro na dramaturgia
O Teatro Experimental do Negro (TEN) foi criado por Abdias do Nascimento em 1944. No “Segundo Ato”, é possível acompanhar sua trajetória, que começa com a encenação de “O imperador Jones”, de Eugene O'Neill, em 8 de maio de 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Abdias assistira à peça em Lima, no Peru, em 1941, e espantou-se com a “blackface” do protagonista, que trazia o rosto pintado de preto, iniciando assim a reflexão profunda sobre a presença do negro na dramaturgia. Isso o motivou lançar as bases da dramaturgia que confere protagonismo ao negro, seja na atuação, direção e escrita de textos teatrais.
Com “O Imperador Jones”, estrelada por elenco negro, Abdias estreou no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. O primeiro texto dramatúrgico escrito por ele foi “Sortilégio – Mistério negro”, peça que conseguiu montar em 1957, após intensa luta com a censura.
O TEN estreou com a peça de O'Neill, autor norte-americano e branco, porque não havia na dramaturgia brasileira texto de autor negro em que o negro pudesse exercer protagonismo.
Além de abrir espaço para afrodescendentes nas artes cênicas, o Teatro Experimental do Negro trouxe a perspectiva pan-africanista.
“Propor a integração do negro nesta sociedade, como se já fosse definida de acordo com tradições e critérios, é diferente da proposta de construir uma sociedade que de forma significativa e verdadeira incorpore e reconheça matrizes ocultadas por uma ideia autorizada de cultura como algo monopolizado pelo homem branco. O TEN traz o artista negro para o palco e para a dramaturgia”, completa Elisa Larkin.
''A roda é a primeira forma em que a gente se encontra e cria comunidade, é intuitivo. A partir disso, passei a pensar como os mobiliários dos espaços de candomblé são feitos''
Jaime Lauriano, artista, sobre ocupação na Inhotim Biblioteca
''A roda é a primeira forma em que a gente se encontra e cria comunidade, é intuitivo. A partir disso, passei a pensar como os mobiliários dos espaços de candomblé são feitos''
Jaime Lauriano, artista, sobre ocupação na Inhotim Biblioteca
Nova hierarquia do conhecimento
O artista Jaime Lauriano elaborou a proposta de ocupação do Inhotim Biblioteca, estabelecendo diálogo com o “Segundo Ato de Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”. O artista propõe um ambiente em que a construção do conhecimento não se dê a partir de hierarquias dos saberes.
“Os livros são meios para encontros”, diz Lauriano ao comentar a ocupação, que ficará em cartaz até novembro de 2023. Os títulos vão de histórias em quadrinhos de autores negros e negras, como o próprio Abdias, a trabalhos de importantes pensadores negros da diáspora, como Frantz Fanon (1925-1961).
SEM PRATELEIRA
Os livros não foram colocados em prateleiras. Em vez disso, estão dispostos em mesas circulares. No formato hexagonal, de madeira e baixos, os bancos podem ser usados separadamente ou em conjunto para criar outros mobiliários.
“Os livros estão espalhados e bagunçados nas mesas para que as pessoas possam acessá-los, tenham vontade de ler, peguem e os usem. A nossa felicidade será quando os livros estiverem com marcas de dedos e as páginas dobradas”, afirma Lauriano.
O mobiliário se organiza em círculos. “Pensamos uma forma de fugir da racionalidade das bibliotecas, esse empreendimento colonial e eurocêntrico, sobretudo iluminista francês, da hierarquização do conhecimento”, diz.
Jaime revisitou tradições de matriz africana para pensar novas maneiras de transmissão do conhecimento. “A roda é a primeira forma em que a gente se encontra e cria comunidade, é intuitivo. A partir disso, passei a pensar como os mobiliários dos espaços de candomblé são feitos.” Os móveis foram inspirados nos bancos de iniciação de terreiros de candomblé.
“SEGUNDO ATO DE ABDIAS DO NASCIMENTO E O MUSEU DE ARTE NEGRA”
Instituto Inhotim, em Brumadinho. De quarta a sexta-feira, das 9h30 às 16h30. Sábado, domingo e feriados, das 9h30 às 17h30. Até 16 de outubro. Inteira: R$ 44. Meia-entrada válida para estudantes identificados, maiores de 60 anos e parceiros do Inhotim. Crianças de até 5 anos não pagam. À venda na plataforma Sympla