Os Bastos são influentes na corrente que tem trazido do Norte, mais precisamente do Amapá, sons de origem negra e indígena, porém cabocla (ou caboca, como eles dizem), até há pouco retraída e circunscrita a seus quilombos. Patrícia Bastos veio primeiro com a força, sobretudo, de seu terceiro álbum, “Zulusa”, de 2013, e do quarto, “Batom bacaba”, de 2016. Álbuns premiados por revelarem um veio geográfico original ao mesmo tempo em que mostravam afetuosa capacidade de soarem universais.
Paulo Bastos, irmão de Patrícia, é percussionista, pesquisador e compositor, autoridade nos cortes do marabaixo, o “samba do Norte”, só recentemente descortinado pelos Bastos nas partes baixas do país. É capaz de criar canções lindas em seus trabalhos, como se tivesse uma floresta dentro de si. Seu disco “Batuqueiro” é uma joia do Amazonas.
BAILES INFANTIS
Agora é a vez da matriarca Oneide Bastos. Ela canta desde menina em bailes infantis de Macapá, depois de nascer do tamanho da palma da mão, à beira-rio, lá pelos anos 1940 na paraense Ilha dos Porcos. Até chegar à plenitude do álbum que leva seu nome, com produção de Dante Ozzetti e realização do projeto Rumos Itaú Cultural, Oneide desbravou um tempo de raros cantos femininos vindos do Norte – passou pelos grupos Trio da Terra, Sonora Brasil e Vozes do Amapá.
Cheia daquela música que soprava tanto de dentro do Brasil, do vizinho Pará, como de fora (afinal, a Guiana Francesa e o Suriname com seus cacicós, zouks e ritmos indo-caribenhos estão logo ali ao lado), ela lançou outros dois trabalhos de alcance regional até chegar a este terceiro.
Se foi de Oneide que saiu o fio de ouro da voz de Patrícia Bastos, ela também o tem e em estado puro. É a mãe de Patrícia, de Paulo e de um lugar inteiro que se impõe no canto pequeno, delicado e transformado por Dante em uma espécie de realeza amazônica.
Oneide é mais rio do que mar, mais banho que arrebentação. Seu Norte é fiel às águas doces e a tudo o que sai delas em imagens que se pode ver quando ela canta. Não é acaso que “Pedra de rio”, de Luhli e Lucina, abra o disco.
APROVAÇÃO DE NEY
Ney Matogrosso a gravou primeiro, em 1975, e ouviu a regravação de Oneide, a pedido da reportagem. “Gostei muito, ela se baseou na minha primeira gravação, que era muito lenta. Que interessante ela cantando essa música. A voz é muito jovem, não parece ser de uma pessoa com mais idade”, comentou.
Uma seda criada por Dante é feita com a diluição do ritmo pelas cordas do violão, quase que o deixando apenas como sugestão, mas sem eliminar seu poder de sedução. Dante consegue criar para Oneide algo muito próximo daquilo que fez para Patrícia Bastos em seus últimos discos. A voz de Oneide é tratada sem interferências, ficando bem à frente.
O time escolhido por Dante tem papel importante nisso. A base é formada pelo baterista Sérgio Reze (e seu jeito de criar climas usando baquetas com e sem feltro), o ótimo baixista Fi Maróstica e o guitarrista Guilherme Held (com a guitarra que sempre pensa diferente de uma guitarra).
Veja apresentação de Oneide no Projeto Brasis:
REPERTÓRIO
Assim, depois de uma grandiosa “Pedra de rio”, segue o desfile de canções deliciosas: “Congá”, de Paulo Bastos; “Alto mar”, de Dante e Tatit; “Batuqueiros”, também de Paulo Bastos; “Puçangueira”, do mestre Joãozinho Gomes com Eudes Fraga; “Taemã”, do talentosíssimo Enrico Di Miceli com Antonio Messias; “Jurupari”, lenda amazônica musicada pela própria Oneide Bastos; “Voou”, de Paulo com Osmar Junior Gonçalves de Castro; “Sereia do rio-mar”, de Joãozinho, Eudes e Paulo Antonio Siso de Oliveira; e a bela “Suprema”, de Joãozinho Gomes e Luiz Carlos Barbosa.
A história é irresistível: Dante Ozzetti inscreveu esse projeto de álbum no Rumos, projeto do Itaú Cultural, sem Oneide saber de nada. Então, deu um presente duplo a esta mulher, à música do Amapá e a quem quer que possa ouvi-las com os ouvidos bem abertos.
“ONEIDE”
.Disco de Oneide
.10 faixas
.Itaú Cultural
.Disponível nas plataformas digitais