Jornal Estado de Minas

MÚSICA

Lô Borges fala de música, vida de solteiro e fim do tesão pelas drogas


Lô Borges, Rio de Janeiro, 1972: com um contrato assinado com a Odeon para um disco dali a três meses, pede ajuda ao irmão Márcio. Não tinha uma música sequer. Vai morar no apartamento dele, no Jardim de Alá, onde os mineiros dividiam o fumo com o vizinho Raul Seixas. 





O Borges mais velho atuava de dia com publicidade, e o mais novo ficava em casa compondo. Ao voltar do trabalho, Márcio fazia a letra. Noite após noite, os dois iam diretamente para o estúdio, onde uma banda os esperava para gravar a canção composta naquele dia.

Lô Borges, Belo Horizonte, 2022: artista independente muito antes do ocaso das gravadoras, ele vive sozinho em um apartamento na região dos Funcionários. Em casa, com um antigo teclado Dx7 que tem desde os anos 1970, uma guitarra Fender Telecaster e um violão Yamaha, ele tem o mundo aos seus pés. Compõe de forma compulsiva e muito rapidamente – em um mês, é capaz de finalizar 10 canções.

“Em 1996, Bituca fez para mim a música ‘Alô’, que diz ‘A febre louca de recriar não calou na esquina/Ficou tão doce quanto estender a mão’. É o que está acontecendo comigo de lá pra cá. Mas foi no ‘Disco do tênis’ (1972), que no final me deixou pirado, anoréxico, drogado, que aprendi a compor com velocidade”, diz Lô.




DATAS REDONDAS 

Sem piração ou excessos e com a cara de menino de sempre, Lô chegou aos 70 em janeiro passado, pronto para comemorar. São também os 50 do início de sua carreira – do lançamento do álbum “Clube da Esquina”, com Milton Nascimento, e da supracitada estreia solo, com o “Disco do tênis”. 
 
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Mesmo com as efemérides, as comemorações têm um pé no presente. Ele ainda está lançando “Chama viva”, que saiu em março passado – é o seu quarto álbum de inéditas nos últimos quatro anos.

Tudo isso estará na pauta do show que fará neste sábado (4/6), com ingressos esgotados, no Sesc Palladium. O reencontro com o público, iniciado em fevereiro, em São Paulo, vem depois de um longo período de recolhimento. “Moro sozinho e sou frequentado pelo meu filho (Luca). Na pandemia, às vezes nem ele ia, pois a gente se cuidou bem.” Diante disso, Lô compôs cerca de 40 músicas durante a crise sanitária.





Ele não gosta de guardar música. Quando isso se tornou novamente possível, foi direto para o estúdio gravar. As letras são de Patrícia Maês (que dividiu com ele a voz em “Desabrochando flor”) e há participações de Milton Nascimento (“Veleiro”), Beto Guedes (“Primeira lição”), Paulinho Moska (“Fica no ar”). À exceção de Beto, todos os demais gravaram remotamente.

PORTAL 

É o primeiro álbum de Lô em que a sonoridade parte do órgão. Puro acidente, diga-se. “O meu teclado tem 78 registros de sons diferentes. Um dia, apertei sem querer o de número 17, do órgão. E ele acabou se tornando o portal pelo qual compus as 10 músicas.” Esse disco sai com o próximo, já previsto para 2023 – o nome provisório é “Guitar songs”.  

“Em 2018, entrei numa de querer compor. Comecei a fazer música e convidei o Nelson Ângelo para fazer as letras (o encontro gerou o disco ‘Rio da Lua’, de 2019). No ano seguinte, fiz a mesma coisa com Makely Ka (dobradinha que resultou em ‘Dínamo’, de 2020). E em 2020, compus o álbum de 2021 com Márcio Borges (‘Muito além do fim’)”, cita Lô.

Quanto mais só, mais concentrado ele fica. “Compor, para mim é uma coisa espiritual. Mesmo quando era casado, sempre tive uma vida mais recolhida. Hoje, componho o triplo”, comenta. 

Lô está solteiro (“Não estou namorando, mas pretendentes não estão faltando”); caseiro (“Quando você fica à noite no bar, no dia seguinte sua roupa está com o maior cheiro de cigarro, e o espírito também, totalmente sem energia”) e comedido (“Não tenho mais tesão nem idade para usar drogas. Sou um senhor e muito chato para beber: só champanhe francês e cachaça de Salinas, mas casualmente”).




Foi Milton Nascimento quem o tirou da esquina de Santa Tereza, onde gastava “muita bunda de calça jeans” tocando violão sem parar. Os dois já tinham duas parcerias – “Clube da Esquina” e “Para Lennon e McCartney”, gravadas no álbum “Milton”, de 1970 – quando o compositor, 10 anos mais velho, chegou para Lô, então menor de idade, para fazer um pedido.

“‘Vou pedir para sua mãe (a professora Maria Fragoso Borges, a Dona Maricota) para você morar comigo no Rio porque quero dividir um álbum’”, relembra Lô sobre essa conversa com Milton.
 
“Chamei o Beto (Guedes) para ir também, mas era a ditadura militar e minha mãe não quis deixar. Ela dizia: ‘Vai juntar três, quatro pessoas num apartamento, ele vai ser considerado aparelho subversivo e vocês vão ser presos.’ Ela tinha um pouco de razão. No Rio, a gente tinha que mudar de apartamento todo mês. Era síndico que expulsava a gente, vizinhos chamando a polícia. Para eles, a gente era hippie, maconheiro e desocupado.”




Eleito em maio o melhor álbum brasileiro já lançado, por meio de enquete do podcast “Discoteca básica” com 162 especialistas em música, “Clube da Esquina”, o álbum duplo e coletivo assinado por Milton e Lô, só saiu do jeito que foi porque José Mynssen, então empresário do primeiro, interveio.

“Ele viu que a gente estava sofrendo demais (com as mudanças mensais de apartamento) e arrumou uma casa paradisíaca em Piratininga, Niterói. Ali foi relaxamento total, com música e mar.” Cética quando Milton, já consagrado, anunciou que dividiria um álbum com um ilustre desconhecido, a gravadora Odeon reconheceu o poderio de Lô ao ouvir as músicas que ele havia composto – “O trem azul”, “Tudo que você podia ser” e “Um girassol da cor do seu cabelo” entre elas.

A gravadora não pensou duas vezes em lhe propor a já citada estreia solo. Mesmo que o batismo de fogo tenha moldado sua carreira definitivamente, Lô admite que saiu exaurido da temporada carioca. “Eu queria voltar pra casa, para o colo da minha mãe, para os meus amigos e para a vida da esquina. Eu estava preparado para fazer música, mas não para tudo o mais que envolve a música.”




 
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Hoje, tais histórias são contadas com graça por Lô, no palco e na vida. “Tem muitos anos que estou solto no palco”, diz ele, lembrando uma brincadeira do parceiro Samuel Rosa. “Ele diz que fomos Beto e eu que inventamos o punk rock nos anos 1970. Nessa época, a gente tocava de costas para o público.” Isso é só passado, hoje é tudo de frente. “Não tenho tremedeira, o famoso frio no estômago, nada. Entro no palco como se estivesse entrando na casa de amigos.”

Mas há surpresas pela frente, e o “ano Lô Borges” ainda promete. Em 21 e 22 de dezembro, ele participa de um projeto inédito com a Orquestra Filarmônica na Sala Minas Gerais. Será a primeira vez que a orquestra vai apresentar um concerto de música popular com roupagem erudita. Os arranjos estão sendo feitos por Neto Bellotto, principal contrabaixo da orquestra e também o nome à frente do quinteto DoContra, que vai participar do espetáculo.

“Desde o chamado do Bituca para eu gravar o ‘Clube da Esquina’, esse é o convite que mais me emocionou. Nunca toquei com tantos músicos, e os arranjos são maduros e com profundo conhecimento da minha obra. O Neto entende mais da minha música do que eu”, afirma Lô.

LÔ BORGES

Show neste sábado (4/6), às 21h, no Sesc Palladium – Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro. Ingressos esgotados