Em sua mais recente passagem por Belo Horizonte, em outubro de 2021, Zélia Duncan escolheu a cidade como o ponto de partida da turnê do álbum "Pelespírito" (2021), trabalho lançado em comemoração aos seus 40 anos de carreira.
Nesta quarta-feira (8/6), a artista está de volta à capital mineira, com uma nova estreia, desta vez como autora. "Benditas coisas que eu não sei - Músicas, memórias, nostalgias felizes" (Agir), seu primeiro livro, será o tema da edição de hoje do projeto Sempre um Papo.
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Entre 2015 e 2017, Zélia Duncan assinou uma coluna semanal no caderno de cultura do jornal “O Globo”, na qual escrevia crônicas. Foi a partir daí que aprofundou o gosto pela escrita. Depois disso, assinou roteiros, um perfil de Dona Ivone Lara, uma peça de teatro, esquetes, textos de orelha, prefácios e posfácios.
FOCO
"Escrever a coluna me deu uma capacidade de foco diferente de tudo o que eu já tinha experimentado. E isso foi me dando um desejo cada vez maior de exercitar isso. Até que me sugeriram fazer um livro sobre música, que não deu muito certo, porque eu não conseguia falar sobre música sem levar para o lado pessoal. E foi a partir disso que o meu livro nasceu", ela explica.De fato, "Benditas coisas que eu não sei" é um livro sobre música, mas sob a ótica particular de uma artista com mais de quatro décadas de carreira. E é também um relato confessional sobre a vida da cantora. Nas brechas da história, ela reflete sobre assuntos relativos ao trabalho como artista, como a importância da plateia e o desuso dos CDs e vinis.
No primeiro capítulo - não ironicamente intitulado "Primeira vez" - ela detalha a primeira vez em que subiu ao palco profissionalmente, em 1981, na Sala Funarte de Brasília, aos 16 anos. Nervosa, com a boca seca, quando chegou a hora de se dirigir ao palco saiu correndo de volta para o camarim, e depois reuniu a coragem para encarar o público de fato.
EMPURRÃO
"A sensação que sempre me acompanha quando descrevo essa cena é a de que, desde então, desde que me empurrei de volta para o palco, eu nunca mais saí", ela escreve. Neste mesmo dia, ela escreveu a música "Primeiro susto", lançada no álbum "Intimidade" (1997).No processo de escrita, Zélia Duncan percebeu que redigir o livro não seria muito diferente de fazer um álbum de músicas inéditas. Ela até compara o trabalho do editor com o do produtor musical. "São profissionais que nos ajudam a encontrar o melhor caminho", comenta.
No entanto, enquanto nas composições Zélia assume uma voz poética, até mesmo lírica, no livro ela vai direto ao ponto. Os textos trazem uma linguagem acessível, nada rebuscada e soam como uma conversa. Em alguns trechos, ela convoca o leitor para dentro da história.
"A letra de música tem que caber numa moldura. Em um livro, cada um faz o que quiser. As letras de música são mais sintéticas e rápidas. O consumo delas é rápido, elas têm esse poder. Elas invadem. A literatura arrebata da mesma maneira, mas a forma como isso acontece é mais lenta", afirma.
Como exemplo, Zélia cita "Torto arado", do escritor baiano Itamar Vieira Junior, do qual foi retirada a epígrafe utilizada em seu livro. "Esse livro mudou a minha vida. Mas para lê-lo você precisa de alguns dias. Uma música não. Você pode estar no dentista, com dor nos dentes, e se uma música começar a tocar e fizer sentido para você, ela vai te atravessar."
Em "Benditas coisas que eu não sei", Zélia Duncan afirma que, em 40 anos de carreira, o que tenta não perder de vista é: "Correr riscos, me jogar em aventuras para não perder o frescor e assim me divertir um tanto e continuar aprendendo com o que faço há tanto tempo".
EXPOSIÇÃO
Para ela, isso se traduz na fórmula de "fazer o que eu nunca fiz". O livro é um exemplo disso. "Quando escrevo, me sinto muito mais exposta do que cantando. Sinto esse peso agora. Uma vez, quando eu escrevia uma coluna, uma pessoa me parou na rua e disse que tinha lido o texto. Me deu uma vergonha, uma timidez que eu já não tenho como cantora. É diferente. Ao escrever, eu me coloco na boca de cena sem maquiagem", ela brinca.Um exemplo desse seu jeito arrojado de levar a carreira é o álbum "Pelespírito", composto, produzido e gravado a distância. Sozinha em casa, ela aprendeu a captar as vozes e passá-las para o computador. As lives da pandemia também foram outro desafio, ainda mais aquelas que teve que fazer sozinha.
"Mas arriscado mesmo é não dar a cara a tapa. O risco é o meu normal. Me sinto bem nesse lugar de fazer o que eu nunca fiz. Só que eu não sou burra. Coloco algumas almofadas porque, se eu cair, a queda não vai ser tão brusca. Tento me rodear de amigos extremamente talentosos. Então, se eu vou cantar Milton Nascimento tem que ser ao lado de Jaques Morelenbaum", ela diz.
Para o livro, Zélia convocou a poeta Alice Ruiz, que assina a apresentação, e a cantora Fernanda Takai, que assina uma pequena resenha na quarta capa. No texto, Takai afirma que Zélia tem "superpoderes": “Canta, toca, compõe, atua, corre maratonas, tem e dá opinião, ama muito os bichos, as gentes e a natureza, não desiste de fazer do Brasil um lugar melhor e agora escreveu um livro!”.
Zélia Duncan fica lisonjeada com os elogios e, ao ser questionada sobre o que poderia fazer do Brasil um lugar melhor, é assertiva: "Ganhar a eleição em outubro". Ela já declarou voto em Lula e é uma das artistas que cantam o jingle da campanha do ex-presidente.
CONSCIENTIZAÇÃO
"Como cidadã, estou focada nisso. Em 2018, eu entendi que precisamos fazer um trabalho de 'formiguinha'. Se eu pensar que não tenho como interferir nas imensas destruições que estão acontecendo, eu não vou sair do lugar. Precisamos começar do micro, um trabalho pequeno, para conscientizar as pessoas", ela afirma."Por isso eu fui para a internet, por isso eu tento estar presente. Para que, de alguma forma, eu possa apoiar as causas que estão em jogo. Todo mundo pode fazer alguma coisa. E eu não faço isso porque eu sou cantora, eu faço isso porque eu sou Zélia Cristina Duncan Gonçalves Moreira, uma pessoa que ainda acredita neste país. Tudo o que eu faço qualquer pessoa pode fazer. É uma luta que não precisa ser individual", ela aponta.
Posicionar-se publicamente sobre questões políticas ou em prol da comunidade LGBTQIA+ é algo recente na vida de Zélia Duncan. "Foi acontecendo porque eu me escondia muito por conta da minha orientação sexual. Não queria ser diferente, mas eu sempre fui. Então percorri um longo caminho e tudo começou comigo enviando mensagens para as pessoas nas minhas letras", ela conta.
Segundo a artista, isso aconteceu com a música "Bom pra você", lançada no álbum "Intimidade" (1996). "Hoje eu vejo como ali havia um desejo de me comunicar com meus iguais. Elas começavam a me procurar, entrar no meu camarim, e isso mudou a minha vida. Se eu estou dizendo isso, eu tenho que ser isso. E foi a partir daí que eu consegui me assumir como mulher lésbica", comenta.
Recentemente, a cantora encarou a função de atriz no curta-metragem "Uma paciência selvagem me trouxe até aqui", da diretora e roteirista Érica Sarmet, no qual dá vida a uma motoqueira solitária que se envolve com um grupo de jovens mulheres. A produção foi selecionada para o Festival de Sundance deste ano de 2022.
"Participei desse curta, que tem no elenco meninas mais novas. E foi extremamente desafiador para mim. Ao longo de toda a minha vida, eu sempre declarei os meus posicionamentos nas minhas atitudes. Nunca disse que não tinha orgulho de ser como sou. Mas lidar com isso publicamente é algo que eu venho fazendo de uns cinco, seis anos para cá, quando comecei a entender um monte de coisas", diz.
"BENDITAS COISAS QUE EU NÃO SEI - MÚSICAS, MEMÓRIAS, NOSTALGIAS FELIZES"
• Zélia Duncan
• Editora Agir (240 págs.)
• R$ 69,90
• Lançamento nesta quarta-feira (8/6), às 19h, no projeto Sempre um Papo. Auditório da Cemig (Av. Barbacena, 1.200, Santo Agostinho) Entrada franca.