A vida não anda nada fácil para Eugênio. Até a vizinha idosa e seu cachorrinho de estimação se renderam ao recém-eleito governo fascista. Armas são vendidas em suaves prestações, anuncia o outdoor. O caos se instaura quando ele vai até o seu editor e o encontra numa mesa ao lado da bandeira do Brasil e a fotografia de certo presidente atrás da poltrona.
“Jesus Kid”, novo filme do cineasta Aly Muritiba, que estreia nesta quinta-feira (9/6) nos cines UNA Belas Artes e Centro Cultural Unimed-BH Minas, pensa o Brasil atual por meio da comédia. A fonte é a obra homônima do escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli.
Lançada no início deste século e relançada em 2021 pela Companhia das Letras, “Jesus Kid” acompanha o escritor de livros de faroeste cuja obra, 28 volumes, é protagonizada pelo caubói do título. Em crise financeira, Eugênio aceita escrever um roteiro para cinema. Para tal, deve ficar três meses isolado em um hotel de luxo. Na novela, Mutarelli critica principalmente os mercados editorial e de cinema.
No filme, com roteiro do próprio Muritiba, as críticas, sempre ferinas, são principalmente dirigidas para o governo Bolsonaro – ainda que em momento algum o nome do atual presidente seja proferido. Sergio Moro e Luciano Hang também estão na história, com as devidas adaptações que a ficção permite.
ADAPTAÇÕES
Histórias de Mutarelli já ganharam versões cinematográficas anteriormente, como é o caso dos longas “O cheiro do ralo” (2006), de Heitor Dhalia; “Natimorto” (2009), de Paulo Machline, e “Quando eu era vivo” (2014), de Marco Dutra. Os personagens sempre à margem e a ironia fina estão nas adaptações, e a atual não foge à regra.
Eugênio (Paulo Miklos, mais uma vez em grande momento), é um neurótico que passa enxaguante bucal ao mesmo tempo em que empunha um cigarro. Vive sozinho com seu peixinho de estimação, Gregório de Matos, e tem habilidade zero no convívio social.
Quando é chamado por um produtor charlatão para escrever um roteiro de um filme “superoriginal” para um diretor clichê, diz não de cara. Mas, na visita ao seu editor, fica sabendo que a série “Jesus Kid” será cancelada. Pior: um figurão do atual governo exige que ele escreva a biografia do novo presidente. Eugênio sai correndo do local, é perseguido e, temendo por sua vida, decide aceitar a proposta do produtor. Pelo menos ficará três meses fechado em um hotel.
A maior parte do longa é ambientada nos domínios de um grande hotel. Lá, realidade e ficção vão se misturando. Eugênio deve escrever uma história sobre um escritor em crise que tenta fazer um roteiro para cinema. Essencialmente, a trama de “Barton Fink” (filme dos irmãos Cohen de 1991), ele ensina ao produtor e ao diretor que o contrataram. Eles dão de ombros e Eugênio tenta, com suas neuroses, sair de situações cada vez mais absurdas.
De uma hora para outra, passa a contar com a presença do próprio Jesus Kid. O personagem-título é interpretado pelo ator Sérgio Marone, também um dos produtores do longa. Foi Marone, que havia comprado os direitos de adaptação do livro uma década atrás, quem convidou Muritiba para assumir o projeto.
As referências nesta primeira incursão na comédia de Muritiba (“Deserto particular”, “Ferrugem”, “Para minha amada morta”) vão do western spaguetti e os já citados irmãos Cohen ao obrigatório Tarantino. Mesmo tendo sido rodado em 2019, no primeiro ano da gestão Bolsonaro, “Jesus Kid” mantém a atualidade. O filme aproveita o momento de crise para refletir sobre ela – com ousadia e ironia.
“JESUS KID”
(Brasil, 2021, 88min., de Aly Muritiba, com Paulo Miklos, Sérgio Marone e Maureen Miranda). Estreia nesta quinta (9/6), às 18h30, na Sala 2 do Centro Cultural Unimed-BH Minas; e às 18h50, na Sala 1 do UNA Cine Belas Artes.