"A música do Milton é quase a criação de um gênero. Ele tem outra forma de pensar música, e mesmo que tenha 60 anos de carreira, o jeito como ele pensa é novo, muito diferente do usual. Quanto mais entro na obra, mais vejo a genialidade dele''
Wilson Lopes, diretor musical da turnê
Dias antes da abertura da venda de ingressos da turnê “A última sessão de música”, o movimento era grande na casa em Itanhangá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Com Milton Nascimento e banda ensaiando na própria residência, onde Milton voltou a morar desde a virada do ano, a equipe resolveu fazer um bolão.
Quantos ingressos seriam vendidos no primeiro dia? “Vinte e oito mil”, disse um. “Não, acho que no máximo 20 mil”, apostou Augusto Kesrouani Nascimento, filho, empresário de Milton e diretor artístico da turnê. Em quatro horas daquele 18 de maio, os 65 mil ingressos colocados à venda acabaram.
EXTRAS
A derradeira temporada nos palcos de Milton, que tem início neste sábado (11/6) na Cidade das Artes, no Rio, vendeu 100 mil ingressos para as doze datas brasileiras – tudo esgotado, com exceção das apresentações de 1º e 4 de novembro, em São Paulo, datas extras anunciadas posteriormente.
Somando com os shows no exterior – 10 na Europa, entre junho e julho, e quatro nos EUA, entre o final de setembro e outubro –, Milton, que chega aos 80 em 26 de outubro, fará 26 apresentações ao todo.
O show no Mineirão, encerramento da turnê, em 13 de novembro, terá 50 mil pessoas – número semelhante de pessoas assistiu, no estádio, a Paul McCartney, em 2013 e 2017, e a Roger Waters em 2018.
É o final de trajetória nos palcos, diga-se. “Não estou me despedindo da música. Recuso-me a dizer adeus à música”, afirmou Milton em recente entrevista ao jornal britânico The Guardian.
“Desde que assumi a carreira dele, minha ideia era colocá-lo de volta no lugar que lhe pertencia na música. A história foi num crescendo bem bonito. O tempo todo o levei para o público jovem. Essa galera já escutou ‘Maria, Maria’, ‘Caçador de mim’ em casa, e a ideia foi mostrar que Milton Nascimento é foda, e que as pessoas tinham que fazer parte da história. Nos últimos anos, o crescimento do público jovem nos shows foi muito grande”, afirma Augusto, que há seis meses passou a administrar a carreira de Beto Guedes. Desde 2016, ele diz, já pensava em como seria a última turnê do pai.
Sul-mato-grossense, Augusto foi oficialmente adotado por Milton em 2017 – mas a relação vinha de mais de uma década. Foi ele quem, então estudante de direito em Juiz de Fora, levou Milton para morar na cidade da Zona da Mata, em 2015. Deprimido e com a saúde debilitada, o cantor ficou recluso por alguns anos, retornando aos palcos em 2017 – desde então, fez as turnês “Semente da terra” (2017 e 2018) e “Clube da Esquina” (2019-2020-2022).
Augusto completou 29 anos em 4 de junho. O que ele tem de idade o violonista e guitarrista Wilson Lopes, de 56, tem de Milton Nascimento. Vinte e nove anos atrás, ele estreou na banda de Milton e há cerca duas décadas assumiu os arranjos e a direção musical. Os dois decidiram o repertório da turnê – que terá entre 38 e 40 canções.
“O grande diferencial é que esta turnê será sobre toda a obra. Augustinho e eu pegamos todos os discos e fomos pincelando o que não dava para ficar de fora. Quando chegamos por volta das 40, comecei a reduzir. Tanto que algumas músicas estão em medley, outras foram diminuídas e outras ficaram inteiras. ‘Morro velho’, por exemplo, está na íntegra, não dá para cortar, aquilo é uma história”, comenta Wilson. Músicas que há muito não eram executadas ao vivo estarão no repertório, como “Caçador de mim”, “Catavento” e “Fazenda”.
"Vamos fazer quase tudo de trem e de carro. A turnê europeia em 2019 foi mais batida do que esta. Quando chegou o último show, ele estava puto porque estava acabando. É bastante show, mas ele viaja acompanhado de fonoaudióloga e tem médico controlando tudo"
Augusto Kesrouani Nascimento, filho e diretor artístico da turnê
PAZ
Wilson Lopes diz que Milton, no passado, participava muito mais das decisões musicais do que atualmente. “Resolvi o repertório da turnê com o Augustinho, fiz todos os arranjos. O Bituca, para mim, está chegando no patamar de anjo. Ele não exige nada e está sempre em paz de espírito. Ele chega (para os ensaios) todo bonitinho, pergunta o que vai cantar ou não, e não reclama de nada. Mas ele nunca foi de reclamar”, continua Wilson.
Profundo conhecedor da obra do cantor e compositor, Wilson Lopes, professor da Escola de Música da UFMG, criou há 10 anos a disciplina Música de Milton.
“A música dele é quase a criação de um gênero. Ele tem outra forma de pensar música, e mesmo que tenha 60 anos de carreira, o jeito como ele pensa é novo, muito diferente do usual. Quanto mais entro na obra, mais vejo a genialidade dele”, afirma Lopes.
Bastante concorrida, a cadeira na UFMG tem, geralmente, de 30 a 40 alunos. “Deixei de dar a disciplina durante um semestre e teve até abaixo-assinado no colegiado”, diz Wilson, que em 21 de julho reúne o grupo de alunos desta temporada para, no Bar do Museu Clube da Esquina, em BH, executar o repertório do álbum duplo que completou 50 anos em 2022.
Wilson Lopes está à frente da banda formada por Lincoln Cheib (bateria), Ademir Fox (piano), Widor Santiago (metais), Zé Ibarra (vocal e violão), Ronaldo Silva (percussão), Alexandre Primo Ito (baixo acústico) e Fred Heliodoro (vocal e baixo elétrico), que está estreando no grupo. Filho do cantor, compositor e guitarrista Affonsinho, Fred, de 34, foi sugerido pelo baixista Alberto Continentino.
A ideia é que ele e Zé Ibarra, além de tocar, dividam os vocais com Milton – coisa que Ibarra fez na turnê anterior. “É um canto de soma, de apoio, de forma que não atrapalhe a voz dele, que é a principal. Tive que entender a forma como o Milton canta, como ele divide a métrica”, conta Fred, que já conhecia bem as músicas, pois integrou a banda de Affonsinho, que dedicou dois álbuns, “Esquinas de Minas 1” e “2”, ao repertório do Clube.
Fred canta “Maria, Maria”, “Paula e Bebeto” e “Bola de meia, bola de gude”, além de fazer backing em boa parte do repertório. Em maio, ele, que hoje vive em São Paulo, ficou hospedado com toda a banda na casa de Milton para os primeiros ensaios. Na quinta-feira (9/6), o grupo voltou a se reunir para os ensaios finais.
CASA “NOVA”
Milton deixou a casa de Itanhangá em 2015, onde vivia há mais de duas décadas. Traumatizado, estava decidido a não mais voltar. Uma parte do teto caiu, houve infestação de cupins, o imóvel estava em péssimo estado. Em meio aos preparativos da turnê, Augusto precisava de uma base no Rio. No ano passado, fez uma grande reforma – colocou elevador, instalou sala de cinema. Milton foi passar o réveillon e não quis mais voltar a Juiz de Fora.
Foi ainda por causa de Augusto que Milton raspou os cabelos. “Gosto dos olhos e da expressão dele, e as tranças tampavam. Cabeça-dura, ele não queria de jeito nenhum. Quando veio a pandemia, as tranças precisaram de manutenção. Falei que não poderia colocar ninguém em casa para mexer no rosto dele, pois, caso acontecesse alguma coisa, o mundo inteiro iria me culpar”, conta Augusto. Milton teve de raspar e agora, segundo o filho, acha muito “mais confortável” a ausência de cabelos.
Ainda de acordo com Augusto, a pandemia foi um baque para o pai, “como com toda pessoa de idade”. Milton acabou de fazer exames médicos e está tudo bem, ele diz.
Mas a temporada de seis meses com 26 shows em três continentes não é algo ousado, diante da fragilidade de Milton?
“Pensei muito nisso na hora de desenhar a turnê. Este mês, na Europa – a agenda começa na quarta (15/6) no Torino Jazz Festival, na Itália –, é um dos momentos de que ele mais gosta. Vamos fazer quase tudo de trem e de carro. A turnê europeia em 2019 foi mais batida do que esta. Quando chegou o último show, ele estava puto porque estava acabando. É bastante show, mas ele viaja acompanhado de fonoaudióloga e tem médico controlando tudo.”
Bituca convida o mundo a acompanhá-lo em sua nova travessia:
Augusto Nascimento se diz a pessoa mais xingada no mundo porque os shows brasileiros se concentrarão no Rio, São Paulo e Belo Horizonte.
“No Nordeste, como escolher um estado só? Se fosse na Bahia, o pessoal de Pernambuco ou da Paraíba ia ficar com raiva. No Sul, a mesma coisa: ele tem um superpúblico em Curitiba, imagina se fosse só em Porto Alegre? Optei pelas três principais capitais por causa da malha aérea, pois fica muito mais fácil.”
Diante de tanta procura, há possibilidade de novas datas? “Meu parâmetro é ver se ele está confortável. Tudo pode acontecer, mas ele tem de estar tranquilo”, finaliza Augusto Nascimento.