Em meados dos anos 1950, o adolescente Antonio Cicero tinha o mundo em sua casa. Na robusta biblioteca do pai, o economista Ewaldo Correia Lima, descobriu “A luta corporal” (1954), obra de estreia do escritor e poeta Ferreira Gullar (1930-2016). Dois poemas, “Galo galo” e “A galinha”, o impactaram sobremaneira.
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Militante na poesia, Ferreira Gullar colecionou prêmios e polêmicasPensar traz entrevista de Ferreira Gullar dada à série 'A arte de escrever'Dentro da mente veloz de Ferreira GullarFilarmônica de MG faz concerto gratuito com obras de finalistas de festivalMuseu em Kiev expõe as memórias (em tempo real) do frontNesta terça (14/6), no café do Centro Cultural Unimed-BH Minas, Cicero fala precisamente sobre a obra de Gullar, em conversa com José Eduardo Gonçalves, curador do projeto. O impacto inicial só fez com que ele, ao longo da vida, não apenas se aprofundasse no conhecimento da obra, como também se aproximasse do poeta maranhense.
A ideia do Letra em Cena de hoje é falar sobre as diferentes fases da poesia de Gullar – poemas também serão lidos por Cicero, exemplificando cada período abordado. “O primeiro livro (‘Um pouco acima do chão’, de 1949, que o próprio considerava imaturo e ingênuo, tanto que não o incluiu nas edições de sua obra completa) reunia poemas metrificados, parnasianos. Quando ele conheceu a obra dos poetas modernistas – Drummond, Manuel Bandeira –, ficou muito impressionado, porque ali já não eram versos rimados nem ritmados nem metrificados. Isso influenciou a feitura de ‘A luta corporal’”, explica Cicero.
DESISTÊNCIA
A ideia de Gullar, segundo Cicero, era de que “a poesia ia inventando a linguagem”. “Isso foi seguido de tal maneira que alguns poemas ficaram simplesmente ilegíveis. Ele mesmo percebeu, depois de um tempo, que tinha destruído a própria possibilidade da poesia. Gullar se mostrou um grande poeta logo, mas neste afã ele chegou a um ponto em que desistiu, pois achou que não dava para continuar.”
Até que entra nesta história o poeta e tradutor Augusto de Campos, que foi ao Rio de Janeiro depois de ler “A luta corporal” para convencer Gullar, que já havia deixado São Luís e se radicado na capital fluminense, a entrar para o movimento concretista. Em 1956, ele participou da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, encontro pioneiro das artes de vanguarda no país.
Mais tarde, romperia com os concretos. Em 1957, no artigo “Da fenomenologia da composição à matemática da composição”, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o poeta e tradutor Haroldo de Campos, irmão de Augusto, afirmava que a poesia concreta seria feita, a partir de então, de acordo com fórmulas matemáticas. “Era contra tudo o que ele queria”, aponta Cicero.
Descontente com os rumos do movimento, Gullar abandonou o barco e, a partir de 1959, encabeçou o Neoconcretismo, inaugurado com uma exposição no MAM-Rio. O grupo, do qual também fizeram parte duas Lygias (Clark e Pape), Amilcar de Castro, Franz Weissmann, entre outros, atuou até 1961.
“O caminho é comprido até ‘Poema sujo’ (1976), que é o centro do trabalho dele. Mas eu considero que os maiores livros dele vieram depois”, afirma Cicero, citando como um de seus favoritos “Em alguma parte alguma” (2010), eleito o livro do ano pelo Jabuti de 2011.
BETHÂNIA
Ainda que a obra de Gullar tenha sido importante para o adolescente Antonio Cicero, outros autores também marcaram sua formação. Aos 12 anos, ele conta, emocionou-se com “Juca Pirama”, de Gonçalves Dias. Pouco depois, quando o pai assumiu um cargo executivo no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a família se mudou para Washington.
“Eu não era muito ligado à escola nem aqui nem lá. O que aconteceu é que meu pai, que era um intelectual, tinha como grandes amigos o (jurista, sociólogo e escritor) Hélio Jaguaribe e o (professor, reitor e escritor) Cândido Mendes. Eles se encontravam muito e comecei a ouvir as conversas. Eu ficava ouvindo, não dava opinião, pois era um garoto, e o que diziam teve um efeito inesperado em mim. Comecei a desprezar professores e alunos da escola, pois achava que não sabiam nada em comparação a papai e aos amigos dele”, conta.
A mudança para outro país não produziu grandes efeitos até que, no colégio, os estudantes eram obrigados a ler uma peça de Shakespeare por ano. Cicero leu tudo, sobretudo as grandes tragédias. “Decorei muita coisa de ‘Macbeth’, ‘Hamlet’ e, encantado por aquilo, passei a ler muita poesia inglesa e americana. Foi papai quem me fez voltar a ler poesia brasileira de novo, aí com outros olhos.”
No retorno ao Brasil, nos anos 1960, ele começa a estudar filosofia – em 1969, é exilado em Londres, onde conclui a graduação. Escrevia poesia desde essa época – “O que eu achava que era poesia”, diz hoje Cicero. Nos anos 1970, retorna para os EUA para fazer pós-graduação. Dez anos mais nova, a irmã Marina Lima foi com ele.
“Um dia, quando estava na faculdade, ela, sem eu saber, pegou um poema que eu tinha escrito e pôs música nele. Quando cheguei fiquei danado, pois como aquela menina tinha coragem de mexer nas minhas coisas?”. À medida que ouviu, acabou gostando.
O primeiro poema a virar canção foi “Alma caiada”. “Quando viemos para o Brasil, mandamos para uma prima nossa, Léa. Ela trabalhava com Bethânia e mostrou para ela, que cantou a música, que acabou censurada. Mas só o fato de a Bethânia ter gostado e cantado fez Marina e eu nos considerarmos compositores”, comenta Cicero.
Já na estreia da irmã em disco, “Simples como fogo” (1979), ele foi parceiro dela em quatro das 10 canções. Standards de Marina, como “Fullgás” (1984) e “Pra começar” (1986), têm letra dele. “A parceria começou com os poemas que ela musicava, mas, depois, a Marina já me dava a música e eu fazia a letra”, descreve.
Cicero acabou se tornando conhecido primeiramente como letrista, ainda que a poesia tenha vindo muito antes em sua trajetória profissional. Mas sua produção poética só veio a ser publicada a partir de 1996, com o lançamento de “Guardar”. Com uma considerável obra poética e ensaística, em 2017 ele foi eleito para ocupar a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras.
“Para mim, é muito bom ter contato com poetas e romancistas que admiro muito”, diz ele, afirmando que a ABL voltou à rotina. As reuniões semanais, sempre às quintas, começam às 16h. “O tal chá, tão famoso, é na verdade um chá que se toma antes de começar a sessão de discussão.”
LETRA EM CENA
Como ler… Ferreira Gullar. Com Antônio Cícero. Nesta terça (14/6), às 19h, no café do Centro Cultural Minas Tênis Clube, Rua da Bahia, 2.244, Lourdes. Entrada franca. Inscrições via Sympla