Foi com base na observação do atual cenário político e social brasileiro, cindido e com divergências cada vez mais alimentadas pelo ódio, que o escritor Sérgio Abranches elaborou seu novo livro, “O intérprete de borboletas”. Ele promove o lançamento da obra nesta terça-feira (21/6), participando do projeto Sempre um Papo, com mediação de seu criador, Afonso Borges, e também do escritor Itamar Vieira Júnior.
O enredo do livro é estruturado a partir de dois núcleos familiares: um deles formado por uma menina entrando na adolescência e tentando se encontrar; por sua mãe, recém-convertida à religião, que tenta moldar a filha ao seu novo comportamento; e pelo pai, mais compreensivo, que busca ajudar a filha e impedir rupturas definitivas na relação entre elas. O outro núcleo é composto por dois irmãos que passaram a se detestar por divergências políticas.
Nesse contexto de turbulências, em que pessoas com ideias contrárias não conseguem dialogar, desponta um outro personagem: o Velho, cuja vivência na política teve início nas ruas de Paris, em 1968, quando os protestos dos estudantes tiveram seu ápice.
Ao voltar ao Brasil, o Velho aderiu à luta contra a ditadura militar, foi preso, torturado e mantido em uma solitária por anos. Passados os anos, ele vive recolhido e isolado em um sítio, rodeado de árvores e borboletas. Com um discurso carregado de experiência, esse personagem procura abrir um caminho pacífico entre os radicalismos e mostrar que é possível conviver com as diferenças.
"Existe um narrador, na terceira pessoa, que vez por outra entra na história com algum comentário que, sim, expressa minha visão. Mas tem as vozes dos personagens; eles falam, dão seu depoimento sobre o que estão vivendo, e aí tentei ser o mais fiel possível ao pensamento divergente do meu, de gente que não tem nada a ver comigo, com ideias das quais discordo"
Sérgio Abranches, cientista político e escritor
POLARIZAÇÃO
Abranches aponta que um dos nascedouros de “O intérprete de borboletas” foi um ensaio que ele próprio escreveu para a Editora Companhia das Letras sobre a polarização do atual cenário político e social. “Tinha ali uma questão de psicologia social que teria uma contrapartida importante na psicologia mesmo, reverberando a forma como esses ódios afetam as pessoas, como invadem a vida pessoal e íntima de cada cidadão”, diz.
Outro estopim para a feitura da obra foi o encontro casual com uma adolescente, pertencente ao seu círculo de amizades, que estava deprimida por ter sido “cancelada” pelas amigas do colégio, por pensar de modo diferente delas. Essa adolescente, ele conta, estava muito triste e fragilizada, e chegou, inclusive, a mudar de escola.
“Esses ódios, essas paixões extremadas, eles invadem a vida das pessoas, deixam de pertencer a uma esfera social e, de repente, estão dentro da sua casa. Entendi que não era possível lidar com essa questão bem, de forma satisfatória, em um ensaio de não ficção. Pensei que só era possível abordar o tema de forma mais aguda por meio da ficção”, diz.
“O caso dessa adolescente detonou o processo de escrita, daí comecei a fazer uma pesquisa e a ter um olhar mais atento para construir os personagens que eu queria abordar”, acrescenta, chamando a atenção para o fato de que sua própria história serve de parâmetro para o que pretendia com “O intérprete de borboletas”.
Ele conta que viveu a adolescência em plena ditadura militar, num momento em que já se entendia como uma pessoa de esquerda, o que lhe rendeu problemas e divergências dentro da própria família – por exemplo, com um tio, industrial, que apoiava o regime. Abranches acredita que a maneira como essas diferenças e discordâncias se davam, no entanto, era diferente.
“À medida que foram crescendo a repressão, as prisões e as perseguições, as famílias se tornaram mais solidárias. Não é como agora, uma coisa muito visceral, um ódio que é muito concreto, que invade o cotidiano, as redes sociais, que cerca as pessoas, o que é um impacto muito duro”, compara.
MOSAICOS
Ele sublinha que não há nada no livro que seja descrição de fato real. As situações são inventadas e os personagens, conforme aponta, são mosaicos, uma soma de características de vários tipos. “De cada situação ou pessoa com quem eu me deparava durante o processo de elaboração desse livro, eu tirava elementos para construir a história. Os personagens, depois de pronto o molde, você burila para que se tornem críveis”, afirma.Abranches diz que “O intérprete de borboletas” não necessariamente expressa a visão que ele tem e a análise que faz da sociedade como cientista político. É numa medida equilibrada que o livro serve de veículo para sua própria voz. Ele destaca que a própria estrutura da narrativa impõe esse equilíbrio.
“Existe um narrador, na terceira pessoa, que vez por outra entra na história com algum comentário que, sim, expressa minha visão. Mas tem as vozes dos personagens; eles falam, dão seu depoimento sobre o que estão vivendo, e aí tentei ser o mais fiel possível ao pensamento divergente do meu, de gente que não tem nada a ver comigo, com ideias das quais discordo”, diz.
TRANSIÇÃO
Abranches salienta que fazer ressoar essas vozes dissonantes requereu esforço, mas era necessário dar espaço a elas para “corporificar essas pessoas que aceitam o ódio”. O escritor diz não ver uma saída fácil para esse cenário de cisão, seja no Brasil ou no mundo, e considera que isso se relaciona com uma era de transição da humanidade.“Acho que estamos vivendo um tempo em que os sentimentos extremos, primitivos, são parte da nossa vida cotidiana, porque estamos passando por um momento de mudanças. O mundo em que estamos vivendo hoje vai acabar, com a globalização, a digitalização, as polarizações políticas, as mudanças que temos que fazer em função da situação climática”, aponta.
Ele observa que essa ponte entre um mundo que termina e outro que começa é difícil de atravessar, porque é inquietante, produz uma expectativa de perda, o que alimenta as paixões extremadas na política. É algo que sai da esfera do interesse público, comum, e vai para a área das emoções, segundo avalia.
“A sociedade e os governantes, se conseguirem encontrar formas de mitigar os efeitos dessa transição, reeducando as pessoas, eles podem encontrar um caminho de conciliação, mas é muito difícil, porque é algo em curso. Ninguém preveniu sobre uma transição que viria; ela se impõe, já é, já está”, diz.
CAMINHO
Em sua opinião, algumas lideranças políticas têm clareza desse cenário e seus discursos apontam para esse lugar de conciliação. Abranches cita o presidente do Chile, Gabriel Boric, e o recém-eleito presidente da Colômbia, Gustavo Petro, como exemplos. “Ambos, depois de eleitos, falaram sobre a necessidade de se instaurar a política do amor e da vida, sobre governar para todos. Parece-me que esse é o caminho”, ressalta.
Em “O intérprete de borboletas”, essas vozes conciliatórias estão sintetizadas na figura do Velho. “É o personagem que reverbera esses discursos, mas ele faz isso de uma forma mais oracular, mais cifrada. O Velho diz que o único caminho bom é o da reconciliação, das pessoas se pacificarem e tentarem lidar de forma mais coletiva com os problemas que estão vivendo”, aponta.
Abranches destaca que essa ideia de transição é o que coloca seu novo livro em diálogo com os dois romances que lançou anteriormente – “O pelo negro do medo” (Record, 2012) e “Que mistério tem Clarice?” (Biblioteca Azul, 2015). “Os três romances guardam um pouco essa premissa, meio ‘guimarãesiana’, de que a realidade se dispõe para as pessoas é na travessia. São três livros que procuram, cada um à sua maneira, traduzir esse mundo de grandes transformações”, comenta.
Ele diz que nos três tenta fazer aquilo que não consegue como sociólogo ou cientista político, que é pensar nos sentimentos das pessoas, nas aflições, nos medos, nas paixões e nos dilemas. “É uma área pela qual não é possível eu transitar como sociólogo, como autor de ensaios. O romance é a janela que abro para a alma das pessoas.”
Com relação à participação de Itamar Vieira Júnior, ele considera que a presença do autor do premiado “Tordo arado” (Editora Todavia, 2019) no Sempre um Papo se dará mais no nível da interlocução do que propriamente da mediação.
“Pensamos determinadas questões por um mesmo prisma; ele tem uma visão literária do mundo com a qual me identifico muito. ‘O intérprete de borboletas’ e ‘Torto arado’ são projetos literários diferentes em relação ao tempo e ao local em que se passam – o meu livro é muito urbano, o dele é rural –, mas que trazem uma visão de mundo e de Brasil que é dialógica”, aponta.
SEMPRE UM PAPO COM SÉRGIO ABRANCHES
Mediação de Itamar Vieira Júnior e Afonso Borges. Nesta terça-feira (21/6), com transmissão pelo Facebook e YouTube do projeto, às 19h